quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Semear. Colher. Vencer.


Já não é a primeira vez. Sob o telhado pagódico, na face remota daquela ilha, da sua ilha, encontram-se. Mais que um refúgio, um esconderijo. Um lugar proibido, assim como o seu amor. Ali se juntaram ao longo de seis anos, longe dos olhares mortíferos de quem desaprova. Sob aquele tecto, floresceram dois amantes furtivos, ficou tudo o resto para trás, sobrou apenas o Amor. À sua frente, uma janela para o mar, a imensidão que os define, uma esperança ténue que os guiou. Mas hoje, os motivos são outros. O Imperador seu pai tem planos para Ela. O Amor não faz parte deles. Muito menos Ele, desconhecido só com a vida para oferecer. Hoje, despedem-se. Hoje, celebram um amor que se espraia através do futuro, eterno, que cada um carregará consigo. Abraçam-se, envoltos no resplendor da Lua, alvo, sincero, sem censura. Olham-se uma última vez, cheios de tudo, crentes de nada.
 -"Acabou." - diz Ela.
 -"Nunca acaba." - diz Ele.
Há seis anos, o Amor semeou. Hoje, o Amor colheu. Hoje, o Amor venceu.

Foto e conto por Pedro


quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Pequeno-almoço



-“Um café e um croissant simples, por favor”.
Tudo isto dito quase num murmúrio. A aparência neutra e os movimentos
contidos conferem-lhe a privacidade que necessita. Abre o envelope amarelo
e faz aparecer por breves segundos uma fotografia. Aquela face está sentada
duas mesas ao lado, imersa numa discussão, empolgada, distraída. O empregado
pousa o café e o croissant em cima da mesa. Sorve um golo. Sabe o que tem que
fazer, já o fez centenas de vezes. Desta vez deram-lhe um dispositivo novo, com
efeito retardado. Assim, pode estar longe quando a balbúrdia começar. Mais
um sorvo. Tem 5 minutos. Retira do bolso um objecto metálico do tamanho de
uma unha. Tem o alvo em linha de vista e em redor ninguém lhe presta atenção.
Prime um botão e uma luz ténue fixa-se no pescoço da vítima. Ao soltá-lo, uma
nanocápsula supersónica penetra-lhe a carne, sem qualquer ruído, sem nenhuma
reacção. Guarda o dispositivo e pede a conta. Nem um sinal de nervosismo. Paga
e dirige-se para a porta. Já do outro lado da rua, ouve gritos de desespero. Atrás
fica um corpo no chão, rodeado de histeria.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Acabar no Fim



Ela vem e a praia devolve-a ao mar.
Ela vai e o mar sacode-a uma e outra vez, num enamoramento longo e erosivo.
Madalena, filha de pescadores e do mar, contempla, como todos os dias, aquele enleamento marítimo e acaba sem querer por tropeçar nos seus próprios pensamentos e embarcar numa sinopse alucinante.
Era Inês que sem pedir licença entrava por ela adentro, impulsiva como sempre fora e Madalena deixava-se levar naquela volúpia, sentindo que o mar a abraçava e a puxava contra si com a força dos amantes.
Amante que foi de uma amante que perdeu.
Naquele jogo de vai e vem, a força que a puxava para o mar era a que sempre a puxara para ela, para Inês. Ela era o seu mar. Percebera-o por fim. Por fim e até ao fim dos dias.
«Mas e onde é o fim dos dias? Onde é o fim? O que é? É suposto acabar no fim quando já não há mais nada além do vazio mas, onde está ele? Consegues senti-lo Inês? Onde é o fim de nós?», perguntas e mais perguntas!
À beira mar, esperam, paciente e voluntariamente por breves instantes.
Instantes que se confundem entre o início do mar e o fim das coisas.
Madalena acorda com um arrepio que lhe percorre todo o corpo nu. Era o mar que a beijava.
«Ines?»!

Foto e conto por Rita

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

11:50


A hora de almoço é a pior altura do dia para Farida. Chegam pessoas e sentam-se, esparramando as nalgas contra si, almofada marroquina de boas famílias. As outras dizem-lhe para ela ver o lado positivo, não passa frio, mas Farida não gosta de ficar espalmada contra a cadeira de ferro. Quente de um lado, frio do outro. Constipa-se. Devia ter estudado como a irmã, que decora um sofá enorme numa casa de família. Mas o pior mesmo são as bufas à hora de almoço. Dez minutos sentados e já Farida sente a brisa a atravessar-lhe o corpo. Então aquele gordo que gosta de se esfregar nela... Oh não! Lá vem ele! Aposto que se vai sentar aq... Blob! Espalmada. Quente. Frio. Brisa. Aroma. Uma hora. Não aguenta mais! Olha à sua volta e observa as outras almofadas. Ela, Farida, cujo nome significa única, sem igual, rodeada por dezenas de almofadas iguaizinhas a ela. Solta um grito mudo de revolta. Deixa-se escorregar pela cadeira, perante o olhar angustiado das suas companheiras. Desliza até ficar pendurada pelos nós que a prendem. Enforca-se.


quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A Presa



O Sol acaba de se pôr, atrás da outra margem do rio. Sentado no pontão, de pernas a baloiçar, Joaquim brinca com o seu carro. Há uma tranquilidade inquieta na côr lilás do fim do dia. Não se sente uma brisa, não se ouve um ruído, não se vislumbra um movimento. Só Joaquim, com o seu carro vermelho, alheado no seu mundo. Joaquim e... algo, algo que se esconde, mas o rapaz não se apercebe. Levanta-se segurando o carrinho que o avô lhe deu no Natal, há 3 Natais atrás, quando ainda era vivo. De pé, observa o fundo do pontão, o reflexo no rio, o contraste com o céu. Nenhum movimento, mas essa presença observa-o. Joaquim não sabe. A curiosidade arrasta-o lentamente para o final do passadiço de madeira, invisivelmente vigiado. Ao sexto passo, o pontão cede, quase em silêncio. Joaquim, sem chão, cai ao rio, desamparado, silencioso. A presença observa impávida o rapaz a debater-se. Joaquim é muito pequeno para poder ganhar a luta ao rio. Por fim, as águas tranquilizam-se, a presença esfuma-se. Era a Morte.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Rodopio



São os últimos dias de Verão. Ainda se sente a brisa quente, mas já com contornos de tormenta. As rajadas fazem balançar os ramos da árvore, despindo-os gradualmente. No chão, um cemitério pintado de vermelho, marca de sangue do fim de mais uma estação. Visão aterradora, mas não há outra. Vermelho sangue ou cinzento cimento. Vermelho. Cinzento. Vermelho. Verde. Verde? Nunca tinha visto verde! Vermelho. Verde novamente. Terror! Já não sente a leve pressão do cordão, o cordão umbilical que a viu nascer. Vermelho. Verde. Um rodopio incessante, intolerável. Não aguenta, vomita! Vermelho. Verde. O vermelho mais perto. O verde mais distante. A brisa. Fecha os olhos. Aceita o vermelho e desfruta da brisa, livre. A vida em retrospectiva. Já não tem medo da mudança, de cerrar um ciclo e iniciar outro. Antes de sentir o impacto com o cinzento, consegue mesmo esboçar um sorriso. Missão cumprida. Aqui termina o papel da última camélia deste verão. Termina e começa. Começa, de novo.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Avesso da Minha Pele


- És tão bonita! – disse ele ao olhar para o meu corpo nu.
Naquele último e derradeiro momento de prazer tudo era doce. Maior que o mundo. Que o fim de todas as coisas.
O toque. O cheiro. O beijo. O desejo.
Ainda sem me tocar já o meu corpo se dava aos seus pensamentos como que adivinhando o caminho já desenhado tantas vezes e atalhado tantas outras, contorcendo-se em movimentos de uma sensualidade quase imaculada.
‘Devo levá-la comigo nesta loucura?’, pensou ao olhar-me nos olhos.
‘Quero-te tanto’, responderam eles.
A pressão daquele corpo forte sobre o meu peito fez-me tremer. ‘Huuumm’.
Nada era proibido, só já não era tão consentido…e entregámo-nos!
Sentia o teu corpo tremer quando me abraçavas!
Um casaco…uma camisa…as calças…a liga. De repente toda a camada de pele falsa que protegia os nossos corpos estava espalhada pelo chão e os nossos corpos, nas mãos um do outro.
Trazias contigo o cheiro exótico de uma paixão de pele! Tudo em ti era energético, forte, envolvente e sentia-me mendigar por ti e cada curva do teu corpo!
Chamavas por mim, quente e livre…assim me entreguei.
Com a aurora veio o sabor amargo do fim quando os teus lábios apenas me disseram
 ‘bom dia’.

 Foto e conto por Rita

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Domingo



É Domingo. E aos Domingos é dia de piquenique ao ar livre.
-"Despacha-te, Alberto, já tenho o farnel pronto!"
-"Já vou!"
Alberto está a vestir o fato domingueiro.
-"Ó Alzira, anda cá ver se me arranjas a camisa."
Alzira abana a cabeça, resignada, e entra no quarto.
-"Ui, estás todo janota. Isso é para quem?"
-"Ora, para quem é que havia de ser, para ti meu couratozinho!"
-"Estás-me a chamar gorda?! Estás igualzinho ao dia em que me enganaste e me levaste ao altar!"
-"Se fosse hoje...", murmura Alberto, enquanto vai buscar a gravata.
-"Parece que vais a um casamento. A mim não me enganas tu, todo arranjadinho por causa da piolhosa da Odete", resmunga Alzira a caminho da cozinha.
É verdade que a Odete já foi piolhosa, mas de há uns anos para cá está muito mais asseada, até já toma banho duas vezes por semana. Alberto sorri enquanto faz o nó da gravata. Devia era ter casado com a Odete em vez desta bruxa!
-"Alzira, onde é que está o meu chapéu?"
-"Pergunta à Odete!"

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

DMT


Silêncio. Já todos dormem menos eu, que não tenho sono. Deitado na cama de rede, tento ler, mas não consigo focar as letras. "O efeito ainda não passou. Talvez agora me consiga concentrar." Fecho os olhos com força. Milhões de pontos de luz movem-se aleatoriamente e esforço-me por lhes dar forma, figura, sentido. Não consigo. "Que desilusão..." Levanto o braço e observo as costas da mão. "Lá estão elas!" Um movimento de luz percorre-me o braço, contorna-me os dedos e volta a sair pelo outro lado. Afinal não são formigas, é apenas luz, uma irradiância que contrasta com a da manhã. Sorrio, é aura. Foco-me nos nós dos dedos. Formam-se números. "Devia apontá-los e jogar na lotaria", penso. Mas alguns têm mais que um dígito, não faz sentido. "Que estupidez!" Volto a olhar a mão. A energia ainda flui, lenta, credível. Olho com ternura uma parte de mim que desconhecia. Tudo nas últimas doze horas parece surreal. A porta abre-se de mansinho.
 -"Já te sentes melhor? Queres um sumo de limão?"
 -"Não então, este livro vende-se em todo o lado."
 -"Ok... vou buscar o sumo."


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O Hóspede



Sebastião não sabia que se chamava Sebastião. Não sabe a sua idade. Não sabe quem é a sua família nem porque não existe com ele. Sebastião vive na rua. Todos os dias percorre quilómetros de cidade pedindo comida e revolvendo o lixo. Muitas vezes passa fome, que isto agora não está fácil para ninguém. Sebastião vive na rua, mas não é um sem-abrigo. Tem uma casa, em ruínas é verdade, mas que o protege da água que cai do céu. Há quem diga que ele é livre, mas Sebastião não sabe o que é a liberdade. No entanto, conhece bem a amizade e até tem um amigo, o André, um hóspede que lhe apareceu em casa há uns dias. Deram-se logo bem, preencheram espaços vazios há muito... Sebastião gostava que André não fosse só um hóspede, estremece de cada vez que o vê sair pela porta sem porta. Ele já saiu há várias horas, mas Sebastião também não sabe o que são horas. Foi há muito tempo, o que o deixa impaciente. Está muito frio, a casa em ruínas não é lá muito bem isolada, mas pelo menos não se molha. Passos lá fora, só pode ser ele.
-"Sebastião, estás aí rapaz?"
-"Béu!"

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Solidão Acompanhada



Diz-me que sou louca por amar.
Mas não me consigo impulsionar sem ti. As impulsões que faço são como quem bebe para esquecer. Esquecer a dor que é existir sem ti. Lembrar-me que há vida além de ti. Que eu existo além de nós. Que eu existo dentro de um ser invulgar, forte e sensível por quem te apaixonaste, e a quem te entregaste num momento no tempo que nele se afundou para sempre.
Não sei o que sobrou de nós em ti.
Em mim sobra ainda um espaço enorme. Sobra uma saudade que me atropela sem piedade. Sobra uma esperança inútil. Uma fístula que não fecha. Uma mágoa…
…ainda sobras tu.
Diz-me que sou louca por te amar!

Foto e conto por Rita

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A Vizinha



- Ó Maria Alcina, estás melhor dos rins?
- Na mesma.
- Anda a gente a gastar um dinheirão em comprimidos e não fazem nada. Olha a minha vizinha, coitada, que continua com a boca uma lástima.
- Benza-a Deus.
- Até assusta… Luís Miguel, anda para ao pé da avó, se faz favor.
[…]
- Tenho agora lá em casa um ferro de engomar que é uma maravilha. Ofereceu-mo o meu mais velho.
- Ai sim?
- Diz que é de caldeira. Aquilo engoma que parece manteiga. Philips!
- Ah, é bom…
- Bem melhor que o da minha vizinha, que veio armar-se com o dela. Mas não é de caldeira!
- Pois…
- É… Luis Miguel, ainda vais cair à água, raios partam o miúdo. Não te volto a chamar!
[…]
- Ó Maria Alcina, então e o Senhor Charmoso?
- Oh, não sei nada dele.
- Mas sei eu! Tenho-o visto a cirandar lá na minha rua. Anda muito amigo da minha vizinha.
- A sério? Conhecem-se?
- Abre-me esses olhos, mulher! Achas que ela tem a boca de lado porquê? Àquilo, na minha terra, chama-se galdéria!
- Ah!
- Brincas… Ó Luis Miguel, já estás dentro de água, meu cabrão! Espera que já aí vou. Nem sabes de que terra és!…

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O Derradeiro Olhar do Lince


Rogério pousa o estojo no chão e aproxima-se da falésia. Ao largo baloiça suavemente um iate. “Ali está”, murmura. Abre o estojo que lhe entregaram uma hora antes. Lá dentro, em várias peças, está uma espingarda de alta precisão, topo de gama. “Com um brinquedo destes, deve ser peixe grande”, pensa, enquanto a monta. Há muito que não lhe confiavam uma missão e só aceitou com a condição de ser a última. Não voltaram a ter no grupo alguém com o seu olho de lince. Nunca falhou um tiro, nunca perdeu um alvo. A arma está pronta. Rogério coloca-a no chão, deita-se e aponta. Pela mira consegue ver o seu alvo, na proa, acompanhado de uma adolescente. Rogério não sabe quem são. Nunca fez perguntas. Não faz juízos. Cumpre ordens. O dedo que acaricia o gatilho prime-o sem aviso. Ao fundo, um homem cai fuzilado e um vestido salpica-se de sangue. Enquanto desmancha a arma, Rogério ouve a histeria da jovem, impávido. Fecha o estojo e guarda-o no carro. Arranca apressado. Hoje vai jantar com a filha e a esta hora já deve apanhar trânsito para atravessar a ponte…


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Ritual


Lá está ela, mais uma vez, na praia, completamente nua. Todos os dias o ritual repete-se. Mas quem será aquela mulher? Rui espreita por detrás das dunas, furtivo, atrevido. Ela desenha formas na areia com os dedos, lenta, provocadora. Rui deixa-se enfeitiçar e entrega-se de longe em segredo. Ela age com naturalidade como se esta praia existisse numa dimensão só sua. Dois personagens sós partilhando a mesma tela. A mulher levanta-se e espreguiça-se na direcção do mar. O sol atravessa-a e Rui vê agora a sua forma em contraluz. As curvas ousadas daquele corpo mais velho por quem sente desejo, curiosidade, ardor, pavor. A obsessão vira perfeição e medo aos olhos de um adolescente. Quem será aquela mulher? Ela vira-se para as dunas e revela a outra metade do seu corpo descoberto. Os catorze ávidos anos do Rui explodem num turbilhão de sensações que não controla. Os dedos cravados na duna, a respiração anelante, o corpo imóvel. Ela foi sua também hoje. O ritual repete-se...


quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Bicicleta que Fazia Sonhar


- Quem é vô?
- Quem é quem Afonso?
- Ali, aquele menino na bicicleta? – e aponta para uma fotografia amarelecida pelos anos.
- Ah, aquele menino é o teu pai quando tinha a tua idade.
Fernando tinha aprendido a andar muitas quedas depois do triciclo. A paixão fora-lhe passada pela mãe Alice, também ela uma apaixonada pela duas rodas desde sempre. Fernando experimentou a sensação várias vezes ainda bem aconchegado no ventre!
- Sabes Afonso, ainda hoje o teu pai adora aquela bicicleta. Com ela viveu muitas aventuras, conheceu outros lugares e olha, foi por causa dela que conheceu a tua mãe!
- É verdade! – interrompe a mãe Beatriz.
- Consegues imaginar o pai no dia em que se casou com a mãe a chegar à igreja de bicicleta?
- A sério mãe?! Que fixe!
- Pai, pai…dás-me a tua bicicleta? - pergunta Afonso todo entusiasmado.
- Também quero viver aventuras e conhecer o mundo!
- Não Afonso, não te posso dar a minha bicicleta filho.
- Porquê pai? – pergunta Afonso quase a chorar.
Fernando pega Afonso ao colo e limpa-lha as lágrimas:
- Mais tarde vais perceber que a realização dos nossos sonhos, as aventuras que vivemos e os sítios que conhecemos, somos nós que conquistamos!
Afonso sorri para o pai sem perceber muito bem o que ele lhe tinha dito:
- Sim pai…mas posso ficar com ela?

Foto e conto por Rita


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O Tesouro de Gabriel (Parte III)


Gabriel demora algum tempo a habituar-se à escuridão. No centro da gruta, forma-se uma imagem de um baú. "Aqui está!", exclama. Não obtém resposta. Gabriel olha em seu redor e não vê ninguém. As pegadas à entrada da gruta são apenas as dele. O baú está agora mais nítido. "Afinal há mesmo um tesouro..." Aproxima-se e abre a tampa, com cuidado. Gabriel não quer acreditar! No interior do baú, bem longe, muito para lá do fundo, estão os piratas que conheceu na praia. Ao lado também estão aqueles duendes da história que a mãe lhe costuma ler antes de dormir. E as estrelas, os planetas, os mares. Vê também a irmã, que sempre quis ter, a andar naquela bicicleta que pediu para o Natal. O baú não parece ter fim. De repente, desaparece tudo e fica apenas uma chave. Gabriel recolhe-a e fecha o baú. Vê uma janela na parede ao fundo da gruta. Roda a chave na pequena fechadura e abre-a, lançando-se no desconhecido.
Acorda no chão do quarto, estremunhado. A mãe entra de rompante. "Gabriel, caíste da cama outra vez!", diz-lhe enquanto faz a cama. Gabriel olha pela janela. Chove. Na palma da sua mão está a chave, a chave dos sonhos. A mãe aproxima-se dele e acaricia-lhe o cabelo.
 -"Tenho uma novidade para ti. Vais ter um irmão..."


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O Tesouro de Gabriel (Parte II)


Ao atravessar a praia, Gabriel apercebe-se que há muito mais gente à sua volta. Alguns piratas pescam, outros afiam as espadas, ainda outros reparam os pequenos escaleres de madeira. Ninguém parece reparar nele, excepto o grupo na fogueira.
 -"Dormiste como uma baleia!" - diz-lhe um dos piratas, passando-lhe um peixe para a mão. - "Então, onde está o tesouro?"
 -"O tesouro?"
 -"Sim, trouxeste-nos aqui para encontrar um tesouro."
Gabriel não quer acreditar. Tesouro? Ele? Quem são estas pessoas que o conhecem?
 -"Está do outro lado da ilha" - diz, sem saber porque o disse.
 -"Então de que estamos à espera?"
Os outros piratas levantam-se e começam a subir a falésia, seguidos pelo atónito Gabriel. Lá em cima percebem que a ilha é minúscula e que o outro lado é uma praia igual à de onde vieram. Gabriel desce o outro lado da falésia, seguindo decidido um propósito que desconhece. Apenas ele parece surpreendido pelo formato estranho da ilha.
 -"Chegámos!" - informa, parando em frente a uma gruta em tudo semelhante àquela onde acordou, minutos antes.
Sem hesitar, mergulham na escuridão.

(continua)


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O Tesouro de Gabriel (Parte I)



Gabriel acorda envolto num abraço de luz. O calor ténue do Sol acabado de nascer contrasta com o frio que se faz sentir à sua volta. Parece uma caverna. Areia no chão. Praia. Os raios de Sol que o despertaram entram por uma abertura nas rochas. "Onde estou e como vim aqui parar? Não me lembro de nada", pensa. Recorda-se que no dia anterior ficou acordado mais tempo, já depois de a mãe o ir deitar. Levanta-se e esfrega os olhos. A única saída é aquela ocupada pelo Sol e Gabriel atravessa-a sem receio, cego pela luz. Cá fora, um mundo inesperado apresenta-se perante os seus olhos. Ao largo, um galeão antigo está ancorado. No alto do mastro, a bandeira negra ondula inconfundível. "Não pode ser, estou a sonhar, os piratas não existem!"
 -"Gabriel, já acordaste? Estamos à tua espera!"
Surpreendido, Gabriel olha para a praia, onde um grupo de três corsários se reúne à volta de uma fogueira. "Mas, quem são? Como sabem o meu nome? Onde estou?"
 -"Despacha-te, a comida vai ficar fria!"
Instintivamente, Gabriel aproxima-se.

(continua)

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Infinito



Sempre que viajo sinto-me livre. Soa um pouco a cliché, mas a verdade é que viajar e ser livre são dois conceitos que só ganham significado quando são adoptados por alguém. Viajar tanto pode ser adormecer num continente e acordar noutro, como sair de casa e desta vez virar à direita em vez de ir pela esquerda. Mais que uma deslocação, viajar implica um estado de espirito, uma predisposição para usar os sentidos, para absorver, para sentir. No fundo, para crescer. Para mim, viajar é procurar ser livre. Esta liberdade aparece de várias formas, mas há uma que me é especial, que eu aprendi a encontrar. É a forma do infinito. Onde quer que vá, sinto-me livre sempre que vejo o infinito. Já o vi nos céus límpidos das noites do deserto, na curvatura da Terra vista através de uma janela de avião e no horizonte, ao fundo da vastidão imensa do mar. É nesse instante, em que vislumbro o infinito, que sou livre, porque encontrei algo que será sempre maior que eu.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Rio Meu


Sento-me e olho-te com ternura. Foi nas tuas margens, Tejo, que a minha vida mudou. Nessas margens onde aprendi que o mundo é muito maior que a herdade onde cresci. Foste tu que me mostraste o caminho da imensidão, a direcção do mar. Tu, sim tu, que albergas peixes, patos, barcos, que em ti tens vida e ensinas a viver, a querer, a lutar. Foi nas tuas lezírias que cruzei a minha infância, brincando com os teus afluentes. Foi sob a tua vigilância permanente que fiz e desfiz amizades, que me aventurei nos prados já distantes de casa. Foi em ti, Tejo, que eu aprendi o amor, esse aperto no peito, essa liberdade da alma. Foste tu que me deste um homem, que me casaste, que me permitiste ser feliz. Esse homem já cá não mora, disse que me esperaria, para não ter pressa. Mas tu, Rio, ainda moras neste quadro, nesta parede da casa que apadrinhaste. Tu e a felicidade. Eu e a saudade...