Uma parceria que nasceu ao sabor de um Pão de Deus para adoçar a passagem dos dias! Um conto que nasce de uma foto! Uma fusão que se pretende libertadora, inspiradora, reflexiva e essencialmente muito feliz! Boas leituras...esperamos por ti!
quinta-feira, 27 de junho de 2013
Desígnio
Caio no chão desamparado. A gravidade venceu. Não me lembro onde me deixaram, nem quem ali me levou. Não sei o que me corre nas veias em vez de sangue. Sinto ao de leve o frio do chão no meu corpo dormente. Não me aguento em pé. Tento em vão captar algum estímulo com a visão, cada vez mais turva. Estou dentro de um cilindro metálico. Nos extremos, dois vidros selam a minha cápsula. Através deles, o branco de paredes a distâncias que não distingo. Tudo à minha volta é ausência de informação, de sentido. Nu e resignado, enrosco-me no que sinto de mim, assumo a posição em que nasci. Aceito o meu desígnio, orgulhoso de ter lutado. Fecho os olhos para me livrar dos não-estímulos que me perseguem. Na escuridão, encontro a luz e a paz que me transportam de não sei onde para sei lá o quê. Afundo-me no iceberg da consciência. Ao longe, oiço passos, mas os estímulos já não me resgatam. Perco-me no Nada...
quinta-feira, 20 de junho de 2013
Escolhas
-"Então Luís, sempre vais para fora?"
-"Ya... vou dar corda aos patins."
-"Fazes bem, isto aqui já deu o que tinha a dar... Continuas sem trabalho?"
Luís responde com um suspiro. Naquela manhã de Domingo, junto com Beto, o seu amigo de infância, vai rodando o half pipe.
-"Tu ainda tás a trabalhar na estiva?"
-"Sim, mas já não é tão bom como foi. Agora deixo lá o dobro do couro por metade do preço."
-"Olha, emigra."
-"Já pensei nisso, mas tenho cá a miúda e a família. Não é uma decisão fácil de tomar."
-"A quem o dizes..."
Beto sorri. Olha a Ponte Vasco da Gama, vigilante, por cima deles. Esse que já foi um símbolo megalómano de uma época em que a prosperidade parecia mesmo real. Hoje, também a ela lhe são imputadas culpas.
-"Então e a Ana?"
-"Não sei..."
-"Vais deixá-la cá?"
-"Está a ver se arranja lá alguma coisa. Para já se calhar fica."
-"Má onda..."
Levantam-se. Mais uma voltinha, mais um espalho!
-"Acho que estou a perder o jeito!"
-"Ahah, olha que lá fora não vais ter disto."
-"Não se pode ter tudo..."
sexta-feira, 14 de junho de 2013
Angústia
“Ah, Portugal… que só estás bem a sofrer.
Do futebol à economia, só estamos bem a sofrer. Quando não temos motivos para tal,
arranjamo-los. Vivemos dessa adrenalina, dessa herança, desse fado de tempos
idos. A nossa mentalidade alimenta-se do sofrimento instalado no nosso país. O
problema, Portugal, é que com esta atitude estás a mandar todos embora, como já
o fizeste no passado. Provocas esta dicotomia de sentimentos naqueles que em ti
vivem, que começa por parecer rebeldia, mas aos poucos, satura. A minha geração
começa a preferir assentar arraiais noutro lado, para ser capaz de te valorizar
como mereces. Prefere desfrutar de ti durante um mês a aturar-te um ano
inteiro. És uma nação com mau feitio, altiva, arrogante a espaços. Colhes
aquilo que semeias…”
Luís decidiu emigrar. Não sente que tenha
outra opção, acha mesmo que o seu lugar não é aqui. Sentado no alto do Parque, olha
para a bandeira lá bem em cima, símbolo da nação que o viu nascer.
“Ao menos esta não está ao contrário…”
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Escapadinha em 5 minutos
Olho à janela. Os céus agitam-se. Ganham vida. Uma nova
cor. Um encanto Primaveril em Dezembro.
Bandos de aves povoam o céu num bailado migratório único.
E com eles, a minha alma viaja, o meu corpo
desmaterializa-se e atravessa todas as fronteiras do imaginário.
Cá de cima vejo a vida correr bem devagarinho, quase
parada, lá em baixo. Pontos de luz marcam qualquer coisa que não sei bem
distinguir. Não me importa e sigo viagem.
Os bandos não param, vêm uns atrás dos outros e quase se
atropelam para garantir que cada um chega primeiro, desenhando nos céus formas
geométricas e figuras estranhas.
Enquanto isso sou levada pelas asas da minha imaginação e
sobrevoo os Grandes Lagos da América do Norte, rumo a sul para o árido Sahara,
plano sobre o Rio Nilo onde me refresco e sigo em direcção ao Egipto e
comtemplo as enigmáticas Pirâmides de Gizé.
‘Que maravilha, que grandeza tamanha’, pensei
absolutamente inebriada!
O desfiladeiro que me leva à recôndita Petra abre caminho
aos aromas da Índia, à imponente Muralha da China, ao Pacífico Sul, à virgem
Patagónia, inspiro a vida no pulmão da terra…
‘Ring, ring’
- Espírito Santo & Associados bom dia está a falar
com a Alice.
E cá em baixo, a vida continua. Bem devagarinho. Quase
parada.
Foto e conto por Rita
quinta-feira, 30 de maio de 2013
Três Luas
Feliciano sobe a rua lentamente. Descreve
círculos quase perfeitos, em direcção a casa. Quase… não fosse a valente
carraspana que apanhou na adega do Chico. Já leva 45 minutos de caminho e só
percorreu 50 metros.
- Sacana
do Chico, deu-me a pinga estragada – diz, agarrado à garrafa de tinto que
trouxe da adega.
-
Vai pra casa, Feliciano – diz-lhe a Dona Odete da janela. – Já tens idade para
ter juízo.
- E
você já tem idade para deixar de ser quadrilheira.
-
Mal-educado!
Encolhe os ombros. Pouco lhe interessam as
palavras de uma viúva feia que passa a vida à janela. Já percorreu mais 20
metros, está à porta da Daniela, a mais recente moradora do bairro.
- Ai
Dani, Dani, senta-te aqui! – grita-lhe da rua.
Abre-se uma janela e assoma-se um rapaz
novo, musculado.
- Vê
lá se queres uma solha, ó bêbedo!
-
Irra que tás arisca hoje – murmura Feliciano, estugando o passo.
Mais meia hora e chega ao destino. Pára e olha
para o céu.
-
Elá… 3 luas! Enganei-me outra vez na rua, raios me partam! Mas como é que eu
vim aqui parar? E de quem é esta garrafa?...
quinta-feira, 23 de maio de 2013
A Hora
Luana sente-se despertar com um murmúrio. Um leve
sopro aos seus ouvidos. Ao entrar no estado consciente, lembra-se que está
sozinha em casa. Abre os olhos em pânico, mas não distingue nada na escuridão.
As portadas da janela do quarto balançam com um ruído ligeiro, à mercê do
vento. No negrume que a envolve, nada. Com o coração a palpitar liga o
candeeiro. A luz forte fere-lhe os olhos mas, na cegueira momentânea, distingue
uma sombra difusa. Grita, mas o grito sai mudo. Esfrega os olhos com força,
tudo à sua volta continua turvo, só distingue vultos, sente tonturas. Ouve um
som abafado que vem do corredor e a luz apaga-se. Luana tem medo, sente os
lábios paralisados. Tacteia até à porta e espreita para o corredor. Vê a
silhueta das escadas. “Estou a imaginar coisas”, pensa. De repente, sente um
arrepio nas costas, uma mão que a segura. Paralisada de medo, sente o coração a
acelerar perigosamente. Não o consegue controlar. Aos ouvidos, um segredo.
“Está na hora”. O coração não aguenta, explode, pára de bater. Luana cai, fulminada, no chão.
quinta-feira, 16 de maio de 2013
Extracção - parte III
Anisha solta um grito surdo. O marido. Entram no
carro e Frank arranca com violência. O marido de Anisha, ex-combatente, sobe
para uma mota e segue-os, de arma em riste. Uma rajada de balas crava-se na
bagageira do carro. A perícia de Frank vai evitando as pessoas que fogem
assustadas. A mota aproxima-se. David levanta a cabeça e uma bala zune-lhe ao
ouvido.
- Acelera, Frank! Ele está mesmo atrás de nós!
- Para onde vamos? – pergunta pela primeira vez
Anisha.
- Temos uma avioneta a 15 kms daqui.
O ruído da mota ouve-se cada vez mais fraco. David
arrisca espreitar por cima do banco e vê o marido de Anisha ao longe a
gesticular. Ficou sem gasolina. Respira de alívio, já estão fora da cidade.
Frank não o desiludiu.
- Quando chegarmos ao Irão o que é que fazemos? –
pergunta Anisha.
- Kuwait – corrige David com um sorriso. Já se
tinha esquecido que Anisha era disléxica com lugares. – Aí levo-te para o meu
mundo.
- E seremos felizes, lá no Canadá? – pergunta com vivacidade.
- Estados Unidos... Sim, muito!
- Nunca mais quero voltar aqui... – diz ela em
surdina, olhando pela janela. – Esta terra nunca foi minha...
quinta-feira, 9 de maio de 2013
Extracção - parte II
Hoje é
dia de mercado, onde Anisha vai, sempre acompanhada do marido. As instruções
haviam sido passadas na semana anterior. Ela arma algazarra no mercado e na
confusão foge para a rua, onde eles a esperam de carro. Tudo pensado para que
nada falhe.
Embrenham-se
discretamente nas ruas de Bagdade. O espectáculo começa daí a meia hora. David
olha-se ao espelho e ajeita a sua madeixa vermelha, marca peculiar de nascença.
Chegam por fim ao mercado, um dos mais movimentados da cidade. Frank estaciona,
pronto a arrancar. Dez minutos. David não esconde o nervosismo. Sai do carro e
observa a multidão que se acotovela por entre as tendas. Anisha ia trazer uma burka cinzenta, ela adora cinzento.
São sete
em ponto. Das profundezas do mercado ouve-se uma voz que David reconhece. A
balbúrdia instala-se. Gritos, empurrões e insultos vindos de todos os lados.
Anisha finta a confusão e corre, guiada pela madeixa de David. Pára por um
momento. Olham-se em transe, reconhecendo, redescobrindo as feições um do
outro. Dez anos em dez segundos.
- Vamos
embora! – grita Frank – Ele vem aí!
Anisha solta um grito surdo. O marido.
(continua)
quinta-feira, 2 de maio de 2013
Extracção - parte I
David acorda pela centésima vez. São cinco horas e
o Sol ainda não nasceu. A ansiedade não o deixa pregar olho. Ao fim de dez anos
de espera, é hoje que a volta a ver. Levanta-se e dirige-se à janela do hotel.
A primeira claridade do dia revela os contornos de Bagdade, cidade que hoje se
ergue das cinzas em que a deixaram. David foi piloto da Força Aérea Americana
na Guerra do Golfo e foi aí, num campo de refugiados no Kuwait, que a viu pela
primeira vez. Anisha destacava-se pela sua personalidade vincada, alegre,
espalhafatosa. Chegou àquele campo perdida do marido que a maltratava. Nos
meses que David ali passou em missão, apaixonaram-se, mas ele foi mandado
regressar de urgência e quando voltou já Anisha havia partido. Contaram-lhe que
o marido a encontrou e voltaram a Bagdade. Nenhum registo, nenhuma morada,
apenas um nome. Hoje, dez anos volvidos, David regressa ao teatro de guerra. Finalmente
descobriu o paradeiro de Anisha por intermédio de Frank, um amigo que lá deixou.
Ela procurou-o em desespero, contando-lhe que o marido a tratava cada vez pior
e que temia pela sua vida. Tomou-lhe apenas um mês a preparar tudo para a tirar
dali para fora. Hoje era o dia. Lá fora, a claridade aumenta, preguiçosa,
desafiadora.
- Acorda,
Frank, está na hora. – diz-lhe David, tocando-lhe ao de leve.
(continua)
quinta-feira, 25 de abril de 2013
Narcisa
"Olha para estas olheiras! Horrível, dormi demasiado
outra vez. Logo hoje que tens um encontro, Narcisa, depois queixa-te que não
desencalhas. Onde será que o César me vai levar? Espero que seja àquele
vegetariano novo, hoje apetece-me algo gourmet.
Ele tem estado muito misterioso, anda a preparar alguma, mas seja como fôr,
Maria Narcisa, tens que estar à altura de qualquer acontecimento. Vamos lá
tratar destas olheiras, nada que um pouco de creme de caracol não resolva. Não
me posso esquecer de pentear o rabo também. Ai, já é tão tarde. Os olhos já
estão, falta só um toque de brilho nas orelhas e... que horror! Estou branca.
Como é que isto me foi acontecer? Tenho a tensão baixa outra vez. Espero que o
César não demore muito, senão desfaleço. Olha para ti, Narcisa, girafa fatal,
ihih! Só falta a cauda e estou pront..."
- Narcisa, chegou o César!
- Já desço!
"Agora esperas, que só te faz bem. Não querias levar
isto tudo de borla. Falta só ajeitar o pescoço e... prontíssima. Hoje, César,
vais comer e chorar por mais!"
quinta-feira, 18 de abril de 2013
Tanta Casa sem Gente
Vou caminhando pelas ruas, hoje com atenção redobrada. Tenho tempo e
a minha cidade merece. As pessoas à minha volta fervilham de um lado para o
outro, devo ser o único folgado. Normalmente são elas que dão frescura ao meu
dia, que me trazem algo de novo. No entanto, hoje, a minha atenção vira-se para
o que não se mexe, para o imóvel. Os edifícios da minha cidade, alguns
seculares, erguem-se dando arcaboiço a cada bairro, a cada rua. Não posso
deixar de reparar que alguns estão vazios e nem sempre em mau estado, o que me
intriga. Por que razão estarão casas em boas condições e no coração da cidade
desabitadas? Continuo a andar, dobro a esquina. O cenário vai-se repetindo de
rua em rua. Chego a um prédio alto, com cartazes a dizer “aluga-se” em quase
todos os andares. Cá em baixo, à entrada, dois sem-abrigo vão ajeitando as
mantas e os cartões, preparando-se para a noite. Um deles ainda é jovem, o seu
rosto transparece esperança no futuro. É inevitável, o paradoxo assola-me.
Tanta casa sem gente e…
quinta-feira, 11 de abril de 2013
Apresentações
- Chega para lá!
- Não me empurres!
- Então sai da frente.
- Não saio.
- Vou-te atropelar.
- Deixa-me conduzir também.
- Não sabes.
- Sei sim!
- O meu pai não deixa. Se partimos alguma coisa, quem apanha
sou eu.
- Vá lá, só até ao fundo do pontão.
- Não, que atiras o carro à água.
- Eu vou com cuidado, prometo.
- O pontão é estreito.
- Já disse que vou com cuidado!
- Está bem, pronto. Mas devagar!
- Sim. Ai, isto é pesado.
- Pois é.
- Que fixe! Olha agora mais rápido.
- Assim não! Vais cair ao rio!
- Pronto, já parei.
Sentam-se na beira do pontão.
- Ontem vi-te a brincar com a Rita.
- Viste?
- Vi. Vocês são namorados?
- Não, somos só amigos. Porquê?
- Por nada...
- Ahhh, gostas da Rita?!
- Não gosto nada!
- Gostas sim, que eu bem te vejo a olhar para ela na escola.
- Já disse que não gosto!
- Calma, que eu não lhe digo nada. Vocês conhecem-se?
- Só de vista.
- Então podias vir logo à tarde brincar lá na rua que eu
apresento-ta.
- Está bem, mas não digas a ninguém!
- Prometo. Queres casar com ela?
- Oh pá, cala-te! Anormal!
quinta-feira, 4 de abril de 2013
Perspectivas
Acordo no chão. Assustado. A minha primeira reacção é levantar-me,
mas não sou capaz. Não me lembro sequer de ter caído. Olho à minha volta e não
vejo sangue, o que me tranquiliza. Percebo que estou numa sala, ecoante, quase
vazia. Não vejo janelas, mas o espaço está iluminado. Um objecto desperta a
minha curiosidade. A poucos metros de mim está um telefone, no solo. Tento
alcançá-lo mas não consigo esticar o braço. Subitamente, o telefone toca. O eco
ricocheteia nas paredes e atravessa-me os tímpanos, deixando-me no desconforto.
Estico o braço mas não posso atender. Desespero. A salvação pode estar ali. Não
sei onde estou, não me mexo, não me salvo. O telefone emudece.
Ele acorda à minha frente. O efeito já deve estar a passar. De um
canto da sala observo no maior silêncio as suas tentativas frustradas para se
mexer. Parece que finalmente acertei na dose. Pelo menos este não morreu. O
veneno deve retirar-lhe a memória por algum tempo, mas o efeito é passageiro.
Analiso as suas reacções enquanto se tenta levantar, noto um crescendo de
tensão. Ele fixa-se no telefone, tenta alcançá-lo, deve crer que ali reside a
informação que procura. Faço soar o telefone e observo o seu desespero. Desligo
a chamada. Deixa cair a cabeça com algum estrondo. Resignação. Anoto. A
experiência foi um sucesso.
quinta-feira, 28 de março de 2013
Pica! Pica!
- Pica, pica, pica! Vá lá…
Pica! Senão não tenho almoço. Vá peixinho, antes que suba a maré e eu tenha que
me levantar daqui. Não estou com muita vontade de me mexer, sabes? Anda,
facilita-me a vida. Se eu chego a casa sem nada, a Maria enferniza-me a cabeça.
Peixinhooo, pica, pica, PICA! Malvado, havias de bater com a cabeça num pneu!
Colabora, peixinho. Comprei-te um isco tão saboroso e tu não me ligas nenhuma.
Que desperdício, afoguei uma minhoca e agora não vens comer? Não me faças essa desfeita,
que a Maria come-me vivo se eu não levo peixe para casa. Vá lááá!
- Então, Alberto, já pescaste
muito?
- Tens dúvidas? Já me fartei
de pescar, mas deito-os ao rio outra vez. Faz-me pena.
- És um coração mole.
- Olha a picar! Já está! As
minhas preces foram ouvidas, peixinho!!
Enrola a linha e sai um carapau pequeno a contorcer-se.
- Um jaquinzinho… É melhor
não aparecer em casa…
quinta-feira, 21 de março de 2013
O Jeitoso das Marés
São quase as doze e Armindo prepara a grelha. "Não
tarda estão aí os primeiros clientes e o cliente não pode esperar",
instrui-nos. Estamos na Doca das Marés, um restaurante típico da costa
vicentina, onde Armindo trabalha há quase dez anos. "Ainda andei na pesca
uns bons anos, mas um dia o mar chateou-se comigo e ficou-me com a traineira.
Dois dias à deriva até dar aqui à costa. Quando cheguei, já me tinham feito o
funeral e tudo!", relata com um sorriso maldoso. No entanto, há uma outra
história, essa sim única no país. Armindo já foi cabeleireiro, caso raro num
pescador. "Apareceu-me aqui aos 16 anos a pedir-me emprego", diz a
Dona Rute, dona de um salão há mais de 50 anos. "Era um moço tão jeitoso,
valha-nos Deus, as clientes gostavam muito dele". Mas a experiência só
durou dois anos. "Não me arrependo. As mulheres eram muito atiradiças.
Cheguei a ter que andar a fugir dos maridos". Hoje, já reformado, não
esquece a arte que o lançou na vida. Enquanto fala connosco aviva as brasas com
um secador. "Matilde, chega-me aqui dois robalos, faz favor!"
quinta-feira, 14 de março de 2013
O Outro Lado do Muro
Salta. Salta. Salta. Não se segura. Cai. O ritual repete-se vezes sem fim. Desde que chegou com as chuvas, Cocas tenta subir aquela parede. Lá na terra de onde saiu há já várias semanas disseram-lhe que tudo é sempre melhor do outro lado do muro branco. Mas não é fácil, a parede é escorregadia até mesmo para as suas membranas. Deste lado a vegetação é muito alta e ele não consegue ver nada. Além do mais não há água, só a da chuva. E se não há água, não há rãs! Afinal, para que é que ele veio de tão longe se não há rãs? Salto. Salto. Salto. Segura-se por fim. Mas e agora? Não consegue saltar até ao topo, vai cair de novo! Cocas olha para o lado e vê uma planta com uma folha que, com o seu melhor salto, até é capaz de alcançar. Mas a folha não deve aguentar o seu peso. Não devia ter comido tantos mosquitos na viagem. Não tem nada a perder, comprime as suas patas traseiras o mais possível e tenta uma projecção épica. Aterrou no chão, deu duas voltas, torceu uma pata. Mas Cocas não sai daqui sem uma rã. Salto. Salto. Salto.
Entretanto, do outro lado do muro, alguém colecciona sapos...
quinta-feira, 7 de março de 2013
O Livro do Amanhecer
Primeiro dia da nova vida. Ele acorda mais cedo, com a luz
da manhã a tocar-lhe o rosto. Aquela luz que só a alvorada tem, que nos enche o
dia de esperança. Desperta, sem pressa, pestana por pestana, músculo por
músculo. Vira-se na cama com cuidado para não a acordar. Ali está ela, linda
como a manhã, dormindo como se nada se tivesse passado. Em cima da mesa de
cabeceira, o livro. As instruções. O propósito. Ali dentro, na primeira página,
estava esta casa onde acorda agora. Ainda não teve coragem de ler mais. A sua
vida até ali medíocre mudou da noite para o dia. Olha para o pote debaixo da
janela, onde encontraram algumas centenas de milhares em notas. Diz o livro que
são para viver a nova vida. Suspira. Ela acorda. Ele observa-a embevecido,
enquanto ela se espreguiça.
- "Bom dia,
jeitoso!"
Aquele olhar cristalino que o fez enamorar. Isso não está no
livro, mas dava um bom prefácio.
- "Bom dia...
salvação...?"
Ela ri-se.
- "Anda, temos
que ir às compras!"
Puff... Lá se foi a magia.
sexta-feira, 1 de março de 2013
Quando Cai a Noite na Cidade (Parte II)
A chuva parou. Sigo uma desconhecida por ruas que desconheço.
Entramos por fim num edifício velho e sombrio. Conduz-me ao último andar e
detém-se junto a uma porta.
- “Quem és tu? Porque me
trouxeste aqui?”, pergunto novamente.
Ignora-me. Abre o embrulho que retirou da parede. Lá dentro está uma
chave.
- “Responde-me!”, insisto,
encostando-a à parede.
- “Trouxe-te aqui para te
ajudar. Chamo-me Laura.”
Gira a chave na fechadura. A luz da rua ilumina a sala. Está atulhada
de móveis, cobertos com lençóis. Há um leve cheiro a mofo no ar. Na varanda, descortino
um vulto, mulher, velho. O roncar de um motor. A mulher vira-se e observa-me:
- “Chegaram. Temos pouco
tempo.”
Entra e dirige-se a um dos móveis. Levanta o lençol e abre uma
pequena gaveta. No interior está um livro que entrega a Laura.
- “Têm aqui as instruções.
Cuida bem dele”, diz, apontando para mim. “Agora… desapareçam!”
Laura puxa-me pelo braço. Não ofereço resistência, há uma força que
me deixa ir. Descemos pelas traseiras e corremos por entre becos e ruelas.
Atrás de nós uma explosão violenta. Laura encosta-me à parede e beija-me
demoradamente. Olha-me, bem fundo, e acena-me com o livro.
- “Já não nos seguem. A nossa vida começa aqui!”
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
Quando cai a Noite na Cidade (Parte I)
Cai a noite. Espreito pela janela e vejo a chuva a bater
desenfreadamente contra o vidro, quase em desespero. “Preciso de te sentir…”
Visto a gabardine e saio para a rua. A chuva abrandou, está agora mais dócil.
Deambulo sem rumo. Preciso de pensar. A noite anterior deixou-me apreensivo.
Quem seria aquela pessoa? Porque me dirigiu a palavra? E o bilhete, o que
significa aquela mensagem? ‹‹Seguem-te››. A verdade é que hoje passei o dia
inquieto. Seria uma mera sugestão?... Dou por mim parado num viaduto. Lá em
baixo um corropio de faróis emana vida na noite fria. Viro-me repentinamente e
uma mão pousa no meu ombro. Aí está ela novamente.
- “Segue-me!”
A curiosidade não me deixa protestar. Dou por mim a seguir um vulto na
escuridão. Num beco, pára e, determinada, encosta-me à parede e beija-me.
- “Temos pouco tempo.”
- “Quem és tu?”, pergunto,
atordoado.
Ela sorri mas não responde. Com uma destreza ímpar retira um
canivete da algibeira. Enterra a ponta na parede e faz saltar um tijolo. Estica
o braço e alcança um pequeno embrulho.
- “Anda! Vou-te mostrar uma
coisa…”
(continua)
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
Perseverança
Esta não é uma história de amor. É apenas a história de um
gajo, um gajo que tinha a mania que sabia andar de patins.
-"Curte aqui
este «move»!"
Esbardalhanço...
-"Olha aqui um
360!"
Tralho aos 90...
-"Tá calor, vou
tirar a camisola!"
É inverno...
Esta é a história do Vando. Desde os 13 que anda na rua, a
tentar. Primeiro no skate, agora nos patins. É cheio de letra para as miúdas,
mas nicles. Tecnicamente, Vando é um falhado. Como todos os falhados, não tem a
noção do ridículo. Carlos Darwin diria que este é um processo de selecção
natural que lhe garante a sobrevivência. Certo dia, Vando tenta outra vez,
aquele «move» que ainda ninguém conseguiu. Ao ganhar velocidade, algo muda, há
um cromossoma que se liberta, uma proteína que se fabrica, a confiança que se
solta. Vando consegue o impossível. Esgares de gozo transformam-se em espanto
puro e mudo. Vando delira, mas como falhado que é, não percebe. À sua volta, o
mundo mudou e concedeu-lhe a sobrevivência.
Moral da história: A perseverança compensa, mesmo se fores
um palhaço.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
Semear. Colher. Vencer.
Já não é a primeira vez. Sob o telhado pagódico, na face
remota daquela ilha, da sua ilha, encontram-se. Mais que um refúgio, um
esconderijo. Um lugar proibido, assim como o seu amor. Ali se juntaram ao longo
de seis anos, longe dos olhares mortíferos de quem desaprova. Sob aquele tecto,
floresceram dois amantes furtivos, ficou tudo o resto para trás, sobrou apenas
o Amor. À sua frente, uma janela para o mar, a imensidão que os define, uma
esperança ténue que os guiou. Mas hoje, os motivos são outros. O Imperador seu
pai tem planos para Ela. O Amor não faz parte deles. Muito menos Ele,
desconhecido só com a vida para oferecer. Hoje, despedem-se. Hoje, celebram um
amor que se espraia através do futuro, eterno, que cada um carregará consigo.
Abraçam-se, envoltos no resplendor da Lua, alvo, sincero, sem censura. Olham-se
uma última vez, cheios de tudo, crentes de nada.
-"Acabou."
- diz Ela.
-"Nunca
acaba." - diz Ele.
Há seis anos, o Amor semeou. Hoje, o Amor colheu. Hoje, o
Amor venceu.
Foto e conto por Pedro
quinta-feira, 31 de janeiro de 2013
Pequeno-almoço
-“Um café e um croissant simples, por favor”.
Tudo isto dito quase num murmúrio. A aparência neutra e os
movimentos
contidos conferem-lhe a privacidade que necessita. Abre o
envelope amarelo
e faz aparecer por breves segundos uma fotografia. Aquela
face está sentada
duas mesas ao lado, imersa numa discussão, empolgada,
distraída. O empregado
pousa o café e o croissant em cima da mesa. Sorve um golo.
Sabe o que tem que
fazer, já o fez centenas de vezes. Desta vez deram-lhe um
dispositivo novo, com
efeito retardado. Assim, pode estar longe quando a balbúrdia
começar. Mais
um sorvo. Tem 5 minutos. Retira do bolso um objecto metálico
do tamanho de
uma unha. Tem o alvo em linha de vista e em redor ninguém
lhe presta atenção.
Prime um botão e uma luz ténue fixa-se no pescoço da vítima.
Ao soltá-lo, uma
nanocápsula supersónica penetra-lhe a carne, sem qualquer
ruído, sem nenhuma
reacção. Guarda o dispositivo e pede a conta. Nem um sinal
de nervosismo. Paga
e dirige-se para a porta. Já do outro lado da rua, ouve
gritos de desespero. Atrás
fica um corpo no chão, rodeado de histeria.
quinta-feira, 24 de janeiro de 2013
Acabar no Fim
Ela vem e a praia devolve-a ao mar.
Ela vai e o mar sacode-a uma e outra vez, num
enamoramento longo e erosivo.
Madalena, filha de pescadores e do mar, contempla, como
todos os dias, aquele enleamento marítimo e acaba sem querer por tropeçar nos
seus próprios pensamentos e embarcar numa sinopse alucinante.
Era Inês que sem pedir licença entrava por ela adentro,
impulsiva como sempre fora e Madalena deixava-se levar naquela volúpia,
sentindo que o mar a abraçava e a puxava contra si com a força dos amantes.
Amante que foi de uma amante que perdeu.
Naquele jogo de vai e vem, a força que a puxava para o
mar era a que sempre a puxara para ela, para Inês. Ela era o seu mar.
Percebera-o por fim. Por fim e até ao fim dos dias.
«Mas e onde é o fim dos dias? Onde é o fim? O que é? É
suposto acabar no fim quando já não há mais nada além do vazio mas, onde está
ele? Consegues senti-lo Inês? Onde é o fim de nós?», perguntas e mais
perguntas!
À beira mar, esperam, paciente e voluntariamente por
breves instantes.
Instantes que se confundem entre o início do mar e o fim
das coisas.
Madalena acorda com um arrepio que lhe percorre todo o
corpo nu. Era o mar que a beijava.
«Ines?»!
Foto e conto por Rita
Foto e conto por Rita
quinta-feira, 17 de janeiro de 2013
11:50
A hora de almoço é a pior altura do dia para Farida. Chegam
pessoas e sentam-se, esparramando as nalgas contra si, almofada marroquina de
boas famílias. As outras dizem-lhe para ela ver o lado positivo, não passa
frio, mas Farida não gosta de ficar espalmada contra a cadeira de ferro. Quente
de um lado, frio do outro. Constipa-se. Devia ter estudado como a irmã, que
decora um sofá enorme numa casa de família. Mas o pior mesmo são as bufas à
hora de almoço. Dez minutos sentados e já Farida sente a brisa a atravessar-lhe
o corpo. Então aquele gordo que gosta de se esfregar nela... Oh não! Lá vem
ele! Aposto que se vai sentar aq... Blob! Espalmada. Quente. Frio. Brisa.
Aroma. Uma hora. Não aguenta mais! Olha à sua volta e observa as outras
almofadas. Ela, Farida, cujo nome significa única, sem igual, rodeada por
dezenas de almofadas iguaizinhas a ela. Solta um grito mudo de revolta.
Deixa-se escorregar pela cadeira, perante o olhar angustiado das suas
companheiras. Desliza até ficar pendurada pelos nós que a prendem. Enforca-se.
quinta-feira, 10 de janeiro de 2013
A Presa
O Sol acaba de se pôr, atrás da outra margem do rio. Sentado
no pontão, de pernas a baloiçar, Joaquim brinca com o seu carro. Há uma
tranquilidade inquieta na côr lilás do fim do dia. Não se sente uma brisa, não
se ouve um ruído, não se vislumbra um movimento. Só Joaquim, com o seu carro
vermelho, alheado no seu mundo. Joaquim e... algo, algo que se esconde, mas o
rapaz não se apercebe. Levanta-se segurando o carrinho que o avô lhe deu no
Natal, há 3 Natais atrás, quando ainda era vivo. De pé, observa o fundo do
pontão, o reflexo no rio, o contraste com o céu. Nenhum movimento, mas essa
presença observa-o. Joaquim não sabe. A curiosidade arrasta-o lentamente para o
final do passadiço de madeira, invisivelmente vigiado. Ao sexto passo, o pontão
cede, quase em silêncio. Joaquim, sem chão, cai ao rio, desamparado,
silencioso. A presença observa impávida o rapaz a debater-se. Joaquim é muito
pequeno para poder ganhar a luta ao rio. Por fim, as águas tranquilizam-se, a
presença esfuma-se. Era a Morte.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
Rodopio
São os últimos dias de Verão. Ainda se sente a brisa quente,
mas já com contornos de tormenta. As rajadas fazem balançar os ramos da árvore,
despindo-os gradualmente. No chão, um cemitério pintado de vermelho, marca de
sangue do fim de mais uma estação. Visão aterradora, mas não há outra. Vermelho
sangue ou cinzento cimento. Vermelho. Cinzento. Vermelho. Verde. Verde? Nunca
tinha visto verde! Vermelho. Verde novamente. Terror! Já não sente a leve
pressão do cordão, o cordão umbilical que a viu nascer. Vermelho. Verde. Um
rodopio incessante, intolerável. Não aguenta, vomita! Vermelho. Verde. O
vermelho mais perto. O verde mais distante. A brisa. Fecha os olhos. Aceita o
vermelho e desfruta da brisa, livre. A vida em retrospectiva. Já não tem medo
da mudança, de cerrar um ciclo e iniciar outro. Antes de sentir o impacto com o
cinzento, consegue mesmo esboçar um sorriso. Missão cumprida. Aqui termina o
papel da última camélia deste verão. Termina e começa. Começa, de novo.
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