quinta-feira, 27 de junho de 2013

Desígnio


Caio no chão desamparado. A gravidade venceu. Não me lembro onde me deixaram, nem quem ali me levou. Não sei o que me corre nas veias em vez de sangue. Sinto ao de leve o frio do chão no meu corpo dormente. Não me aguento em pé. Tento em vão captar algum estímulo com a visão, cada vez mais turva. Estou dentro de um cilindro metálico. Nos extremos, dois vidros selam a minha cápsula. Através deles, o branco de paredes a distâncias que não distingo. Tudo à minha volta é ausência de informação, de sentido. Nu e resignado, enrosco-me no que sinto de mim, assumo a posição em que nasci. Aceito o meu desígnio, orgulhoso de ter lutado. Fecho os olhos para me livrar dos não-estímulos que me perseguem. Na escuridão, encontro a luz e a paz que me transportam de não sei onde para sei lá o quê. Afundo-me no iceberg da consciência. Ao longe, oiço passos, mas os estímulos já não me resgatam. Perco-me no Nada...

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Escolhas


-"Então Luís, sempre vais para fora?"
-"Ya... vou dar corda aos patins."
-"Fazes bem, isto aqui já deu o que tinha a dar... Continuas sem trabalho?"
Luís responde com um suspiro. Naquela manhã de Domingo, junto com Beto, o seu amigo de infância, vai rodando o half pipe.
-"Tu ainda tás a trabalhar na estiva?"
-"Sim, mas já não é tão bom como foi. Agora deixo lá o dobro do couro por metade do preço."
-"Olha, emigra."
-"Já pensei nisso, mas tenho cá a miúda e a família. Não é uma decisão fácil de tomar."
-"A quem o dizes..."
Beto sorri. Olha a Ponte Vasco da Gama, vigilante, por cima deles. Esse que já foi um símbolo megalómano de uma época em que a prosperidade parecia mesmo real. Hoje, também a ela lhe são imputadas culpas.
-"Então e a Ana?"
-"Não sei..."
-"Vais deixá-la cá?"
-"Está a ver se arranja lá alguma coisa. Para já se calhar fica."
-"Má onda..."
Levantam-se. Mais uma voltinha, mais um espalho!
-"Acho que estou a perder o jeito!"
-"Ahah, olha que lá fora não vais ter disto."
-"Não se pode ter tudo..."

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Angústia


“Ah, Portugal… que só estás bem a sofrer. Do futebol à economia, só estamos bem a sofrer. Quando não temos motivos para tal, arranjamo-los. Vivemos dessa adrenalina, dessa herança, desse fado de tempos idos. A nossa mentalidade alimenta-se do sofrimento instalado no nosso país. O problema, Portugal, é que com esta atitude estás a mandar todos embora, como já o fizeste no passado. Provocas esta dicotomia de sentimentos naqueles que em ti vivem, que começa por parecer rebeldia, mas aos poucos, satura. A minha geração começa a preferir assentar arraiais noutro lado, para ser capaz de te valorizar como mereces. Prefere desfrutar de ti durante um mês a aturar-te um ano inteiro. És uma nação com mau feitio, altiva, arrogante a espaços. Colhes aquilo que semeias…”
Luís decidiu emigrar. Não sente que tenha outra opção, acha mesmo que o seu lugar não é aqui. Sentado no alto do Parque, olha para a bandeira lá bem em cima, símbolo da nação que o viu nascer.

“Ao menos esta não está ao contrário…”

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Escapadinha em 5 minutos



Olho à janela. Os céus agitam-se. Ganham vida. Uma nova cor. Um encanto Primaveril em Dezembro.
Bandos de aves povoam o céu num bailado migratório único.
E com eles, a minha alma viaja, o meu corpo desmaterializa-se e atravessa todas as fronteiras do imaginário.
Cá de cima vejo a vida correr bem devagarinho, quase parada, lá em baixo. Pontos de luz marcam qualquer coisa que não sei bem distinguir. Não me importa e sigo viagem.
Os bandos não param, vêm uns atrás dos outros e quase se atropelam para garantir que cada um chega primeiro, desenhando nos céus formas geométricas e figuras estranhas.
Enquanto isso sou levada pelas asas da minha imaginação e sobrevoo os Grandes Lagos da América do Norte, rumo a sul para o árido Sahara, plano sobre o Rio Nilo onde me refresco e sigo em direcção ao Egipto e comtemplo as enigmáticas Pirâmides de Gizé.
‘Que maravilha, que grandeza tamanha’, pensei absolutamente inebriada!
O desfiladeiro que me leva à recôndita Petra abre caminho aos aromas da Índia, à imponente Muralha da China, ao Pacífico Sul, à virgem Patagónia, inspiro a vida no pulmão da terra…

‘Ring, ring’

- Espírito Santo & Associados bom dia está a falar com a Alice.


E cá em baixo, a vida continua. Bem devagarinho. Quase parada.

Foto e conto por Rita

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Três Luas



Feliciano sobe a rua lentamente. Descreve círculos quase perfeitos, em direcção a casa. Quase… não fosse a valente carraspana que apanhou na adega do Chico. Já leva 45 minutos de caminho e só percorreu 50 metros.
 - Sacana do Chico, deu-me a pinga estragada – diz, agarrado à garrafa de tinto que trouxe da adega.
 - Vai pra casa, Feliciano – diz-lhe a Dona Odete da janela. – Já tens idade para ter juízo.
 - E você já tem idade para deixar de ser quadrilheira.
 - Mal-educado!
Encolhe os ombros. Pouco lhe interessam as palavras de uma viúva feia que passa a vida à janela. Já percorreu mais 20 metros, está à porta da Daniela, a mais recente moradora do bairro.
 - Ai Dani, Dani, senta-te aqui! – grita-lhe da rua.
Abre-se uma janela e assoma-se um rapaz novo, musculado.
 - Vê lá se queres uma solha, ó bêbedo!
 - Irra que tás arisca hoje – murmura Feliciano, estugando o passo.
Mais meia hora e chega ao destino. Pára e olha para o céu.
 - Elá… 3 luas! Enganei-me outra vez na rua, raios me partam! Mas como é que eu vim aqui parar? E de quem é esta garrafa?...

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A Hora


Luana sente-se despertar com um murmúrio. Um leve sopro aos seus ouvidos. Ao entrar no estado consciente, lembra-se que está sozinha em casa. Abre os olhos em pânico, mas não distingue nada na escuridão. As portadas da janela do quarto balançam com um ruído ligeiro, à mercê do vento. No negrume que a envolve, nada. Com o coração a palpitar liga o candeeiro. A luz forte fere-lhe os olhos mas, na cegueira momentânea, distingue uma sombra difusa. Grita, mas o grito sai mudo. Esfrega os olhos com força, tudo à sua volta continua turvo, só distingue vultos, sente tonturas. Ouve um som abafado que vem do corredor e a luz apaga-se. Luana tem medo, sente os lábios paralisados. Tacteia até à porta e espreita para o corredor. Vê a silhueta das escadas. “Estou a imaginar coisas”, pensa. De repente, sente um arrepio nas costas, uma mão que a segura. Paralisada de medo, sente o coração a acelerar perigosamente. Não o consegue controlar. Aos ouvidos, um segredo. “Está na hora”. O coração não aguenta, explode, pára de bater. Luana cai, fulminada, no chão.


quinta-feira, 16 de maio de 2013

Extracção - parte III


Anisha solta um grito surdo. O marido. Entram no carro e Frank arranca com violência. O marido de Anisha, ex-combatente, sobe para uma mota e segue-os, de arma em riste. Uma rajada de balas crava-se na bagageira do carro. A perícia de Frank vai evitando as pessoas que fogem assustadas. A mota aproxima-se. David levanta a cabeça e uma bala zune-lhe ao ouvido.
- Acelera, Frank! Ele está mesmo atrás de nós!
- Para onde vamos? – pergunta pela primeira vez Anisha.
- Temos uma avioneta a 15 kms daqui.
O ruído da mota ouve-se cada vez mais fraco. David arrisca espreitar por cima do banco e vê o marido de Anisha ao longe a gesticular. Ficou sem gasolina. Respira de alívio, já estão fora da cidade. Frank não o desiludiu.
- Quando chegarmos ao Irão o que é que fazemos? – pergunta Anisha.
- Kuwait – corrige David com um sorriso. Já se tinha esquecido que Anisha era disléxica com lugares. – Aí levo-te para o meu mundo.
- E seremos felizes, lá no Canadá? – pergunta com vivacidade.
- Estados Unidos... Sim, muito!
- Nunca mais quero voltar aqui... – diz ela em surdina, olhando pela janela. – Esta terra nunca foi minha...



quinta-feira, 9 de maio de 2013

Extracção - parte II


Hoje é dia de mercado, onde Anisha vai, sempre acompanhada do marido. As instruções haviam sido passadas na semana anterior. Ela arma algazarra no mercado e na confusão foge para a rua, onde eles a esperam de carro. Tudo pensado para que nada falhe.
Embrenham-se discretamente nas ruas de Bagdade. O espectáculo começa daí a meia hora. David olha-se ao espelho e ajeita a sua madeixa vermelha, marca peculiar de nascença. Chegam por fim ao mercado, um dos mais movimentados da cidade. Frank estaciona, pronto a arrancar. Dez minutos. David não esconde o nervosismo. Sai do carro e observa a multidão que se acotovela por entre as tendas. Anisha ia trazer uma burka cinzenta, ela adora cinzento.
São sete em ponto. Das profundezas do mercado ouve-se uma voz que David reconhece. A balbúrdia instala-se. Gritos, empurrões e insultos vindos de todos os lados. Anisha finta a confusão e corre, guiada pela madeixa de David. Pára por um momento. Olham-se em transe, reconhecendo, redescobrindo as feições um do outro. Dez anos em dez segundos.
- Vamos embora! – grita Frank – Ele vem aí!
Anisha solta um grito surdo. O marido.

(continua)


quinta-feira, 2 de maio de 2013

Extracção - parte I


David acorda pela centésima vez. São cinco horas e o Sol ainda não nasceu. A ansiedade não o deixa pregar olho. Ao fim de dez anos de espera, é hoje que a volta a ver. Levanta-se e dirige-se à janela do hotel. A primeira claridade do dia revela os contornos de Bagdade, cidade que hoje se ergue das cinzas em que a deixaram. David foi piloto da Força Aérea Americana na Guerra do Golfo e foi aí, num campo de refugiados no Kuwait, que a viu pela primeira vez. Anisha destacava-se pela sua personalidade vincada, alegre, espalhafatosa. Chegou àquele campo perdida do marido que a maltratava. Nos meses que David ali passou em missão, apaixonaram-se, mas ele foi mandado regressar de urgência e quando voltou já Anisha havia partido. Contaram-lhe que o marido a encontrou e voltaram a Bagdade. Nenhum registo, nenhuma morada, apenas um nome. Hoje, dez anos volvidos, David regressa ao teatro de guerra. Finalmente descobriu o paradeiro de Anisha por intermédio de Frank, um amigo que lá deixou. Ela procurou-o em desespero, contando-lhe que o marido a tratava cada vez pior e que temia pela sua vida. Tomou-lhe apenas um mês a preparar tudo para a tirar dali para fora. Hoje era o dia. Lá fora, a claridade aumenta, preguiçosa, desafiadora.
 - Acorda, Frank, está na hora. – diz-lhe David, tocando-lhe ao de leve.

(continua)


quinta-feira, 25 de abril de 2013

Narcisa



"Olha para estas olheiras! Horrível, dormi demasiado outra vez. Logo hoje que tens um encontro, Narcisa, depois queixa-te que não desencalhas. Onde será que o César me vai levar? Espero que seja àquele vegetariano novo, hoje apetece-me algo gourmet. Ele tem estado muito misterioso, anda a preparar alguma, mas seja como fôr, Maria Narcisa, tens que estar à altura de qualquer acontecimento. Vamos lá tratar destas olheiras, nada que um pouco de creme de caracol não resolva. Não me posso esquecer de pentear o rabo também. Ai, já é tão tarde. Os olhos já estão, falta só um toque de brilho nas orelhas e... que horror! Estou branca. Como é que isto me foi acontecer? Tenho a tensão baixa outra vez. Espero que o César não demore muito, senão desfaleço. Olha para ti, Narcisa, girafa fatal, ihih! Só falta a cauda e estou pront..."
- Narcisa, chegou o César!
- Já desço!
"Agora esperas, que só te faz bem. Não querias levar isto tudo de borla. Falta só ajeitar o pescoço e... prontíssima. Hoje, César, vais comer e chorar por mais!"

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Tanta Casa sem Gente



Vou caminhando pelas ruas, hoje com atenção redobrada. Tenho tempo e a minha cidade merece. As pessoas à minha volta fervilham de um lado para o outro, devo ser o único folgado. Normalmente são elas que dão frescura ao meu dia, que me trazem algo de novo. No entanto, hoje, a minha atenção vira-se para o que não se mexe, para o imóvel. Os edifícios da minha cidade, alguns seculares, erguem-se dando arcaboiço a cada bairro, a cada rua. Não posso deixar de reparar que alguns estão vazios e nem sempre em mau estado, o que me intriga. Por que razão estarão casas em boas condições e no coração da cidade desabitadas? Continuo a andar, dobro a esquina. O cenário vai-se repetindo de rua em rua. Chego a um prédio alto, com cartazes a dizer “aluga-se” em quase todos os andares. Cá em baixo, à entrada, dois sem-abrigo vão ajeitando as mantas e os cartões, preparando-se para a noite. Um deles ainda é jovem, o seu rosto transparece esperança no futuro. É inevitável, o paradoxo assola-me. Tanta casa sem gente e…

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Apresentações


- Chega para lá!
- Não me empurres!
- Então sai da frente.
- Não saio.
- Vou-te atropelar.
- Deixa-me conduzir também.
- Não sabes.
- Sei sim!
- O meu pai não deixa. Se partimos alguma coisa, quem apanha sou eu.
- Vá lá, só até ao fundo do pontão.
- Não, que atiras o carro à água.
- Eu vou com cuidado, prometo.
- O pontão é estreito.
- Já disse que vou com cuidado!
- Está bem, pronto. Mas devagar!
- Sim. Ai, isto é pesado.
- Pois é.
- Que fixe! Olha agora mais rápido.
- Assim não! Vais cair ao rio!
- Pronto, já parei.
Sentam-se na beira do pontão.
- Ontem vi-te a brincar com a Rita.
- Viste?
- Vi. Vocês são namorados?
- Não, somos só amigos. Porquê?
- Por nada...
- Ahhh, gostas da Rita?!
- Não gosto nada!
- Gostas sim, que eu bem te vejo a olhar para ela na escola.
- Já disse que não gosto!
- Calma, que eu não lhe digo nada. Vocês conhecem-se?
- Só de vista.
- Então podias vir logo à tarde brincar lá na rua que eu apresento-ta.
- Está bem, mas não digas a ninguém!
- Prometo. Queres casar com ela?
- Oh pá, cala-te! Anormal!

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Perspectivas


Acordo no chão. Assustado. A minha primeira reacção é levantar-me, mas não sou capaz. Não me lembro sequer de ter caído. Olho à minha volta e não vejo sangue, o que me tranquiliza. Percebo que estou numa sala, ecoante, quase vazia. Não vejo janelas, mas o espaço está iluminado. Um objecto desperta a minha curiosidade. A poucos metros de mim está um telefone, no solo. Tento alcançá-lo mas não consigo esticar o braço. Subitamente, o telefone toca. O eco ricocheteia nas paredes e atravessa-me os tímpanos, deixando-me no desconforto. Estico o braço mas não posso atender. Desespero. A salvação pode estar ali. Não sei onde estou, não me mexo, não me salvo. O telefone emudece.

Ele acorda à minha frente. O efeito já deve estar a passar. De um canto da sala observo no maior silêncio as suas tentativas frustradas para se mexer. Parece que finalmente acertei na dose. Pelo menos este não morreu. O veneno deve retirar-lhe a memória por algum tempo, mas o efeito é passageiro. Analiso as suas reacções enquanto se tenta levantar, noto um crescendo de tensão. Ele fixa-se no telefone, tenta alcançá-lo, deve crer que ali reside a informação que procura. Faço soar o telefone e observo o seu desespero. Desligo a chamada. Deixa cair a cabeça com algum estrondo. Resignação. Anoto. A experiência foi um sucesso.


quinta-feira, 28 de março de 2013

Pica! Pica!



 - Pica, pica, pica! Vá lá… Pica! Senão não tenho almoço. Vá peixinho, antes que suba a maré e eu tenha que me levantar daqui. Não estou com muita vontade de me mexer, sabes? Anda, facilita-me a vida. Se eu chego a casa sem nada, a Maria enferniza-me a cabeça. Peixinhooo, pica, pica, PICA! Malvado, havias de bater com a cabeça num pneu! Colabora, peixinho. Comprei-te um isco tão saboroso e tu não me ligas nenhuma. Que desperdício, afoguei uma minhoca e agora não vens comer? Não me faças essa desfeita, que a Maria come-me vivo se eu não levo peixe para casa. Vá lááá!
 - Então, Alberto, já pescaste muito?
 - Tens dúvidas? Já me fartei de pescar, mas deito-os ao rio outra vez. Faz-me pena.
 - És um coração mole.
 - Olha a picar! Já está! As minhas preces foram ouvidas, peixinho!!
Enrola a linha e sai um carapau pequeno a contorcer-se.
 - Um jaquinzinho… É melhor não aparecer em casa…

quinta-feira, 21 de março de 2013

O Jeitoso das Marés


São quase as doze e Armindo prepara a grelha. "Não tarda estão aí os primeiros clientes e o cliente não pode esperar", instrui-nos. Estamos na Doca das Marés, um restaurante típico da costa vicentina, onde Armindo trabalha há quase dez anos. "Ainda andei na pesca uns bons anos, mas um dia o mar chateou-se comigo e ficou-me com a traineira. Dois dias à deriva até dar aqui à costa. Quando cheguei, já me tinham feito o funeral e tudo!", relata com um sorriso maldoso. No entanto, há uma outra história, essa sim única no país. Armindo já foi cabeleireiro, caso raro num pescador. "Apareceu-me aqui aos 16 anos a pedir-me emprego", diz a Dona Rute, dona de um salão há mais de 50 anos. "Era um moço tão jeitoso, valha-nos Deus, as clientes gostavam muito dele". Mas a experiência só durou dois anos. "Não me arrependo. As mulheres eram muito atiradiças. Cheguei a ter que andar a fugir dos maridos". Hoje, já reformado, não esquece a arte que o lançou na vida. Enquanto fala connosco aviva as brasas com um secador. "Matilde, chega-me aqui dois robalos, faz favor!"


quinta-feira, 14 de março de 2013

O Outro Lado do Muro




Salta. Salta. Salta. Não se segura. Cai. O ritual repete-se vezes sem fim. Desde que chegou com as chuvas, Cocas tenta subir aquela parede. Lá na terra de onde saiu há já várias semanas disseram-lhe que tudo é sempre melhor do outro lado do muro branco. Mas não é fácil, a parede é escorregadia até mesmo para as suas membranas. Deste lado a vegetação é muito alta e ele não consegue ver nada. Além do mais não há água, só a da chuva. E se não há água, não há rãs! Afinal, para que é que ele veio de tão longe se não há rãs? Salto. Salto. Salto. Segura-se por fim. Mas e agora? Não consegue saltar até ao topo, vai cair de novo! Cocas olha para o lado e vê uma planta com uma folha que, com o seu melhor salto, até é capaz de alcançar. Mas a folha não deve aguentar o seu peso. Não devia ter comido tantos mosquitos na viagem. Não tem nada a perder, comprime as suas patas traseiras o mais possível e tenta uma projecção épica. Aterrou no chão, deu duas voltas, torceu uma pata. Mas Cocas não sai daqui sem uma rã. Salto. Salto. Salto.
Entretanto, do outro lado do muro, alguém colecciona sapos...

quinta-feira, 7 de março de 2013

O Livro do Amanhecer



Primeiro dia da nova vida. Ele acorda mais cedo, com a luz da manhã a tocar-lhe o rosto. Aquela luz que só a alvorada tem, que nos enche o dia de esperança. Desperta, sem pressa, pestana por pestana, músculo por músculo. Vira-se na cama com cuidado para não a acordar. Ali está ela, linda como a manhã, dormindo como se nada se tivesse passado. Em cima da mesa de cabeceira, o livro. As instruções. O propósito. Ali dentro, na primeira página, estava esta casa onde acorda agora. Ainda não teve coragem de ler mais. A sua vida até ali medíocre mudou da noite para o dia. Olha para o pote debaixo da janela, onde encontraram algumas centenas de milhares em notas. Diz o livro que são para viver a nova vida. Suspira. Ela acorda. Ele observa-a embevecido, enquanto ela se espreguiça.
 - "Bom dia, jeitoso!"
Aquele olhar cristalino que o fez enamorar. Isso não está no livro, mas dava um bom prefácio.
 - "Bom dia... salvação...?"
Ela ri-se.
 - "Anda, temos que ir às compras!"
Puff... Lá se foi a magia.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Quando Cai a Noite na Cidade (Parte II)



A chuva parou. Sigo uma desconhecida por ruas que desconheço. Entramos por fim num edifício velho e sombrio. Conduz-me ao último andar e detém-se junto a uma porta.
 - “Quem és tu? Porque me trouxeste aqui?”, pergunto novamente.
Ignora-me. Abre o embrulho que retirou da parede. Lá dentro está uma chave.
 - “Responde-me!”, insisto, encostando-a à parede.
 - “Trouxe-te aqui para te ajudar. Chamo-me Laura.”
Gira a chave na fechadura. A luz da rua ilumina a sala. Está atulhada de móveis, cobertos com lençóis. Há um leve cheiro a mofo no ar. Na varanda, descortino um vulto, mulher, velho. O roncar de um motor. A mulher vira-se e observa-me:
 - “Chegaram. Temos pouco tempo.”
Entra e dirige-se a um dos móveis. Levanta o lençol e abre uma pequena gaveta. No interior está um livro que entrega a Laura.
 - “Têm aqui as instruções. Cuida bem dele”, diz, apontando para mim. “Agora… desapareçam!”
Laura puxa-me pelo braço. Não ofereço resistência, há uma força que me deixa ir. Descemos pelas traseiras e corremos por entre becos e ruelas. Atrás de nós uma explosão violenta. Laura encosta-me à parede e beija-me demoradamente. Olha-me, bem fundo, e acena-me com o livro.
 - “Já não nos seguem. A nossa vida começa aqui!”

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Quando cai a Noite na Cidade (Parte I)



Cai a noite. Espreito pela janela e vejo a chuva a bater desenfreadamente contra o vidro, quase em desespero. “Preciso de te sentir…” Visto a gabardine e saio para a rua. A chuva abrandou, está agora mais dócil. Deambulo sem rumo. Preciso de pensar. A noite anterior deixou-me apreensivo. Quem seria aquela pessoa? Porque me dirigiu a palavra? E o bilhete, o que significa aquela mensagem? ‹‹Seguem-te››. A verdade é que hoje passei o dia inquieto. Seria uma mera sugestão?... Dou por mim parado num viaduto. Lá em baixo um corropio de faróis emana vida na noite fria. Viro-me repentinamente e uma mão pousa no meu ombro. Aí está ela novamente.
 - “Segue-me!”
A curiosidade não me deixa protestar. Dou por mim a seguir um vulto na escuridão. Num beco, pára e, determinada, encosta-me à parede e beija-me.
 - “Temos pouco tempo.”
 - “Quem és tu?”, pergunto, atordoado.
Ela sorri mas não responde. Com uma destreza ímpar retira um canivete da algibeira. Enterra a ponta na parede e faz saltar um tijolo. Estica o braço e alcança um pequeno embrulho.
 - “Anda! Vou-te mostrar uma coisa…”

(continua)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Perseverança


Esta não é uma história de amor. É apenas a história de um gajo, um gajo que tinha a mania que sabia andar de patins.
 -"Curte aqui este «move»!"
Esbardalhanço...
 -"Olha aqui um 360!"
Tralho aos 90...
 -"Tá calor, vou tirar a camisola!"
É inverno...
Esta é a história do Vando. Desde os 13 que anda na rua, a tentar. Primeiro no skate, agora nos patins. É cheio de letra para as miúdas, mas nicles. Tecnicamente, Vando é um falhado. Como todos os falhados, não tem a noção do ridículo. Carlos Darwin diria que este é um processo de selecção natural que lhe garante a sobrevivência. Certo dia, Vando tenta outra vez, aquele «move» que ainda ninguém conseguiu. Ao ganhar velocidade, algo muda, há um cromossoma que se liberta, uma proteína que se fabrica, a confiança que se solta. Vando consegue o impossível. Esgares de gozo transformam-se em espanto puro e mudo. Vando delira, mas como falhado que é, não percebe. À sua volta, o mundo mudou e concedeu-lhe a sobrevivência.

Moral da história: A perseverança compensa, mesmo se fores um palhaço.