quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Pequeno-almoço



-“Um café e um croissant simples, por favor”.
Tudo isto dito quase num murmúrio. A aparência neutra e os movimentos
contidos conferem-lhe a privacidade que necessita. Abre o envelope amarelo
e faz aparecer por breves segundos uma fotografia. Aquela face está sentada
duas mesas ao lado, imersa numa discussão, empolgada, distraída. O empregado
pousa o café e o croissant em cima da mesa. Sorve um golo. Sabe o que tem que
fazer, já o fez centenas de vezes. Desta vez deram-lhe um dispositivo novo, com
efeito retardado. Assim, pode estar longe quando a balbúrdia começar. Mais
um sorvo. Tem 5 minutos. Retira do bolso um objecto metálico do tamanho de
uma unha. Tem o alvo em linha de vista e em redor ninguém lhe presta atenção.
Prime um botão e uma luz ténue fixa-se no pescoço da vítima. Ao soltá-lo, uma
nanocápsula supersónica penetra-lhe a carne, sem qualquer ruído, sem nenhuma
reacção. Guarda o dispositivo e pede a conta. Nem um sinal de nervosismo. Paga
e dirige-se para a porta. Já do outro lado da rua, ouve gritos de desespero. Atrás
fica um corpo no chão, rodeado de histeria.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Acabar no Fim



Ela vem e a praia devolve-a ao mar.
Ela vai e o mar sacode-a uma e outra vez, num enamoramento longo e erosivo.
Madalena, filha de pescadores e do mar, contempla, como todos os dias, aquele enleamento marítimo e acaba sem querer por tropeçar nos seus próprios pensamentos e embarcar numa sinopse alucinante.
Era Inês que sem pedir licença entrava por ela adentro, impulsiva como sempre fora e Madalena deixava-se levar naquela volúpia, sentindo que o mar a abraçava e a puxava contra si com a força dos amantes.
Amante que foi de uma amante que perdeu.
Naquele jogo de vai e vem, a força que a puxava para o mar era a que sempre a puxara para ela, para Inês. Ela era o seu mar. Percebera-o por fim. Por fim e até ao fim dos dias.
«Mas e onde é o fim dos dias? Onde é o fim? O que é? É suposto acabar no fim quando já não há mais nada além do vazio mas, onde está ele? Consegues senti-lo Inês? Onde é o fim de nós?», perguntas e mais perguntas!
À beira mar, esperam, paciente e voluntariamente por breves instantes.
Instantes que se confundem entre o início do mar e o fim das coisas.
Madalena acorda com um arrepio que lhe percorre todo o corpo nu. Era o mar que a beijava.
«Ines?»!

Foto e conto por Rita

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

11:50


A hora de almoço é a pior altura do dia para Farida. Chegam pessoas e sentam-se, esparramando as nalgas contra si, almofada marroquina de boas famílias. As outras dizem-lhe para ela ver o lado positivo, não passa frio, mas Farida não gosta de ficar espalmada contra a cadeira de ferro. Quente de um lado, frio do outro. Constipa-se. Devia ter estudado como a irmã, que decora um sofá enorme numa casa de família. Mas o pior mesmo são as bufas à hora de almoço. Dez minutos sentados e já Farida sente a brisa a atravessar-lhe o corpo. Então aquele gordo que gosta de se esfregar nela... Oh não! Lá vem ele! Aposto que se vai sentar aq... Blob! Espalmada. Quente. Frio. Brisa. Aroma. Uma hora. Não aguenta mais! Olha à sua volta e observa as outras almofadas. Ela, Farida, cujo nome significa única, sem igual, rodeada por dezenas de almofadas iguaizinhas a ela. Solta um grito mudo de revolta. Deixa-se escorregar pela cadeira, perante o olhar angustiado das suas companheiras. Desliza até ficar pendurada pelos nós que a prendem. Enforca-se.


quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A Presa



O Sol acaba de se pôr, atrás da outra margem do rio. Sentado no pontão, de pernas a baloiçar, Joaquim brinca com o seu carro. Há uma tranquilidade inquieta na côr lilás do fim do dia. Não se sente uma brisa, não se ouve um ruído, não se vislumbra um movimento. Só Joaquim, com o seu carro vermelho, alheado no seu mundo. Joaquim e... algo, algo que se esconde, mas o rapaz não se apercebe. Levanta-se segurando o carrinho que o avô lhe deu no Natal, há 3 Natais atrás, quando ainda era vivo. De pé, observa o fundo do pontão, o reflexo no rio, o contraste com o céu. Nenhum movimento, mas essa presença observa-o. Joaquim não sabe. A curiosidade arrasta-o lentamente para o final do passadiço de madeira, invisivelmente vigiado. Ao sexto passo, o pontão cede, quase em silêncio. Joaquim, sem chão, cai ao rio, desamparado, silencioso. A presença observa impávida o rapaz a debater-se. Joaquim é muito pequeno para poder ganhar a luta ao rio. Por fim, as águas tranquilizam-se, a presença esfuma-se. Era a Morte.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Rodopio



São os últimos dias de Verão. Ainda se sente a brisa quente, mas já com contornos de tormenta. As rajadas fazem balançar os ramos da árvore, despindo-os gradualmente. No chão, um cemitério pintado de vermelho, marca de sangue do fim de mais uma estação. Visão aterradora, mas não há outra. Vermelho sangue ou cinzento cimento. Vermelho. Cinzento. Vermelho. Verde. Verde? Nunca tinha visto verde! Vermelho. Verde novamente. Terror! Já não sente a leve pressão do cordão, o cordão umbilical que a viu nascer. Vermelho. Verde. Um rodopio incessante, intolerável. Não aguenta, vomita! Vermelho. Verde. O vermelho mais perto. O verde mais distante. A brisa. Fecha os olhos. Aceita o vermelho e desfruta da brisa, livre. A vida em retrospectiva. Já não tem medo da mudança, de cerrar um ciclo e iniciar outro. Antes de sentir o impacto com o cinzento, consegue mesmo esboçar um sorriso. Missão cumprida. Aqui termina o papel da última camélia deste verão. Termina e começa. Começa, de novo.