quinta-feira, 26 de julho de 2012

Pó de Arroz


1939. Batalha de Brest. Narciso ajeita-se na trincheira. Pelo ar, voam granadas. À sua volta, o ruído ensurdecedor dos disparos. Ao longe, o troar dos canhões. "Raios partam a Guerra", pensa. "Isto está-me a dar cabo da pele!"
-"Arnaldo, toma aqui conta disto que eu tenho que ir arejar."
Arnaldo anui e assume o posto. Arnaldo acha que é o Rambo. Narciso dirige-se ao sofá das comunicações, tentando não pisar ninguém nem sujar as botas. Pega no telefone e liga ao esteticista da Companhia.
-"Nando, preciso de uma limpeza de pele."
-"Tenho livre às quatro."
-"Marca!"
Pousa o telefone. Suspira. Rebenta uma granada. Narciso tira do bolso um espelho e observa o rosto. "Que desagradável, estou cheio de terra!"
No regresso, encontra Arnaldo em dificuldades.
-"Ó Arnaldo, já estás sem um braço! É sempre a mesma coisa, não te posso deixar a tomar conta de nada."
Arnaldo encolhe o ombro e devolve um morteiro ao inimigo. Entretanto, o silvo da sirene soa na trincheira. Pousam-se as armas e lavam-se as mãos. É meio-dia, hora de almoço na Guerra.


quinta-feira, 19 de julho de 2012

Vestígios de Nós


Transpiro. Gotas de suor brotam, lentamente, das profundezas da minha pele. Os meses de verão na planície alentejana são impiedosos. Semicerro os olhos e levo o copo à boca. A textura adstringente aquece-me por momentos a boca. Se calhar o calor é do vinho. Levanto-me e aproximo-me da janela. Uma brisa gentil afaga-me o rosto. Lá fora, as searas douradas pelo Sol rodeiam a casa, conferindo-lhe o isolamento perfeito para os pecados que aqui ousamos. Vidas paralelas. A minha mulher cruza-me o pensamento. Ela não merece. Sinto novamente o suor a querer soltar-se. Se calhar o calor vem da culpa. Ela não merece, mas e eu, mereço ser prisioneiro dos meus erros? Sinto um braço que me envolve. Dou meia volta e deixo-me levar por um beijo profundo. Uma onda ardente percorre-me o corpo. Não, afinal o calor vem do coração. Abraçados, encaminhamo-nos para o quarto. Na mesa, atrás, ficam os copos vazios, testemunhos de volúpia, vestígios de nós.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Luminescências



Fengo achava-se diferente. Por muito que se esforçasse sentia que não pertencia àquele lugar. O seu irmão Lumi há muito tempo que tinha o seu emprego e a sua família. Até Lampi, a irmã mais nova, mal parava em casa desde que tinha namorado novo. Na cidade dos pirilampos, parecia que todos tinham encontrado o seu lugar menos Fengo. Minúsculos pontos luminosos cruzavam os céus num labor contínuo e nos parques as fosforescências viam-se sempre aos pares. "Aqui não há espaço para mim", dizia muitas vezes a Lucerno, o seu melhor amigo. "Não sejas tonto. E a Lizzi?". Sim, Lizzi tinha um dos mais belos resplendores da cidade, mas Fengo preocupava-se mais com o seu, que se tornava a cada dia mais ténue. Um dia, decidiu partir. Voou sem rumo definido, semanas a fio. Atravessou montes e vales, rios e lagos, silêncios e tempestades, sem sequer olhar para trás. Uma luminosidade intensa no horizonte deteve-o. Era diferente da sua e Fengo soube que tinha chegado. Tinha ouvido muitas histórias sobre a incandescência da cidade dos humanos. Fengo sobrevoou feliz a cidade, subindo e descendo, entre espirais vertiginosas e voltas mortais. Ali era diferente e tudo era diferente. Apaixonou-se pela luminosidade escaldante de um candeeiro de jardim e ali viveu, noite após noite, até que a sua luz se apagou. Ser diferente, no lugar certo, é bom.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Doçura


O cheiro a canela espraia-se pela cozinha. Na panela ao lume, o arroz borbulha em movimentos preguiçosos, com o vagar das coisas, que só as coisas têm. Lucinda agarra uma colher e mergulha-a na panela, remexendo o arroz em movimentos firmes e circulares. As suas mãos, há mais de meio século a segurar as rédeas da família, levam a colher à boca. "Está quase pronto", pensa com um sorriso. Desta vez saiu-lhe bem essa receita que atravessou gerações.
 - "Avó! Avó! Já está pronto?" A neta Susana irrompe pela cozinha.
 - "Está quase, minha filha", diz Lucinda pegando nela ao colo.
 - "Avó, porque é que o teu arroz é doce?"
Lucinda fita os olhos vivos e curiosos de Susana. Esses olhos que reflectem a inocência e a bondade que só se pode ter aos três anos. "A doçura está nesse olhar", pensa para si. O mesmo olhar, a mesma inocência que já tinha visto na filha e nos irmãos mais novos, que ajudou a criar. Num segundo, o pensamento foge-lhe através de décadas, em busca do que já não pode voltar.
 - "Então, é do açúcar!", responde por fim.
Um dia, mais para a frente, entenderás, Susana.