quinta-feira, 28 de março de 2013

Pica! Pica!



 - Pica, pica, pica! Vá lá… Pica! Senão não tenho almoço. Vá peixinho, antes que suba a maré e eu tenha que me levantar daqui. Não estou com muita vontade de me mexer, sabes? Anda, facilita-me a vida. Se eu chego a casa sem nada, a Maria enferniza-me a cabeça. Peixinhooo, pica, pica, PICA! Malvado, havias de bater com a cabeça num pneu! Colabora, peixinho. Comprei-te um isco tão saboroso e tu não me ligas nenhuma. Que desperdício, afoguei uma minhoca e agora não vens comer? Não me faças essa desfeita, que a Maria come-me vivo se eu não levo peixe para casa. Vá lááá!
 - Então, Alberto, já pescaste muito?
 - Tens dúvidas? Já me fartei de pescar, mas deito-os ao rio outra vez. Faz-me pena.
 - És um coração mole.
 - Olha a picar! Já está! As minhas preces foram ouvidas, peixinho!!
Enrola a linha e sai um carapau pequeno a contorcer-se.
 - Um jaquinzinho… É melhor não aparecer em casa…

quinta-feira, 21 de março de 2013

O Jeitoso das Marés


São quase as doze e Armindo prepara a grelha. "Não tarda estão aí os primeiros clientes e o cliente não pode esperar", instrui-nos. Estamos na Doca das Marés, um restaurante típico da costa vicentina, onde Armindo trabalha há quase dez anos. "Ainda andei na pesca uns bons anos, mas um dia o mar chateou-se comigo e ficou-me com a traineira. Dois dias à deriva até dar aqui à costa. Quando cheguei, já me tinham feito o funeral e tudo!", relata com um sorriso maldoso. No entanto, há uma outra história, essa sim única no país. Armindo já foi cabeleireiro, caso raro num pescador. "Apareceu-me aqui aos 16 anos a pedir-me emprego", diz a Dona Rute, dona de um salão há mais de 50 anos. "Era um moço tão jeitoso, valha-nos Deus, as clientes gostavam muito dele". Mas a experiência só durou dois anos. "Não me arrependo. As mulheres eram muito atiradiças. Cheguei a ter que andar a fugir dos maridos". Hoje, já reformado, não esquece a arte que o lançou na vida. Enquanto fala connosco aviva as brasas com um secador. "Matilde, chega-me aqui dois robalos, faz favor!"


quinta-feira, 14 de março de 2013

O Outro Lado do Muro




Salta. Salta. Salta. Não se segura. Cai. O ritual repete-se vezes sem fim. Desde que chegou com as chuvas, Cocas tenta subir aquela parede. Lá na terra de onde saiu há já várias semanas disseram-lhe que tudo é sempre melhor do outro lado do muro branco. Mas não é fácil, a parede é escorregadia até mesmo para as suas membranas. Deste lado a vegetação é muito alta e ele não consegue ver nada. Além do mais não há água, só a da chuva. E se não há água, não há rãs! Afinal, para que é que ele veio de tão longe se não há rãs? Salto. Salto. Salto. Segura-se por fim. Mas e agora? Não consegue saltar até ao topo, vai cair de novo! Cocas olha para o lado e vê uma planta com uma folha que, com o seu melhor salto, até é capaz de alcançar. Mas a folha não deve aguentar o seu peso. Não devia ter comido tantos mosquitos na viagem. Não tem nada a perder, comprime as suas patas traseiras o mais possível e tenta uma projecção épica. Aterrou no chão, deu duas voltas, torceu uma pata. Mas Cocas não sai daqui sem uma rã. Salto. Salto. Salto.
Entretanto, do outro lado do muro, alguém colecciona sapos...

quinta-feira, 7 de março de 2013

O Livro do Amanhecer



Primeiro dia da nova vida. Ele acorda mais cedo, com a luz da manhã a tocar-lhe o rosto. Aquela luz que só a alvorada tem, que nos enche o dia de esperança. Desperta, sem pressa, pestana por pestana, músculo por músculo. Vira-se na cama com cuidado para não a acordar. Ali está ela, linda como a manhã, dormindo como se nada se tivesse passado. Em cima da mesa de cabeceira, o livro. As instruções. O propósito. Ali dentro, na primeira página, estava esta casa onde acorda agora. Ainda não teve coragem de ler mais. A sua vida até ali medíocre mudou da noite para o dia. Olha para o pote debaixo da janela, onde encontraram algumas centenas de milhares em notas. Diz o livro que são para viver a nova vida. Suspira. Ela acorda. Ele observa-a embevecido, enquanto ela se espreguiça.
 - "Bom dia, jeitoso!"
Aquele olhar cristalino que o fez enamorar. Isso não está no livro, mas dava um bom prefácio.
 - "Bom dia... salvação...?"
Ela ri-se.
 - "Anda, temos que ir às compras!"
Puff... Lá se foi a magia.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Quando Cai a Noite na Cidade (Parte II)



A chuva parou. Sigo uma desconhecida por ruas que desconheço. Entramos por fim num edifício velho e sombrio. Conduz-me ao último andar e detém-se junto a uma porta.
 - “Quem és tu? Porque me trouxeste aqui?”, pergunto novamente.
Ignora-me. Abre o embrulho que retirou da parede. Lá dentro está uma chave.
 - “Responde-me!”, insisto, encostando-a à parede.
 - “Trouxe-te aqui para te ajudar. Chamo-me Laura.”
Gira a chave na fechadura. A luz da rua ilumina a sala. Está atulhada de móveis, cobertos com lençóis. Há um leve cheiro a mofo no ar. Na varanda, descortino um vulto, mulher, velho. O roncar de um motor. A mulher vira-se e observa-me:
 - “Chegaram. Temos pouco tempo.”
Entra e dirige-se a um dos móveis. Levanta o lençol e abre uma pequena gaveta. No interior está um livro que entrega a Laura.
 - “Têm aqui as instruções. Cuida bem dele”, diz, apontando para mim. “Agora… desapareçam!”
Laura puxa-me pelo braço. Não ofereço resistência, há uma força que me deixa ir. Descemos pelas traseiras e corremos por entre becos e ruelas. Atrás de nós uma explosão violenta. Laura encosta-me à parede e beija-me demoradamente. Olha-me, bem fundo, e acena-me com o livro.
 - “Já não nos seguem. A nossa vida começa aqui!”