quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Solidão Acompanhada



Diz-me que sou louca por amar.
Mas não me consigo impulsionar sem ti. As impulsões que faço são como quem bebe para esquecer. Esquecer a dor que é existir sem ti. Lembrar-me que há vida além de ti. Que eu existo além de nós. Que eu existo dentro de um ser invulgar, forte e sensível por quem te apaixonaste, e a quem te entregaste num momento no tempo que nele se afundou para sempre.
Não sei o que sobrou de nós em ti.
Em mim sobra ainda um espaço enorme. Sobra uma saudade que me atropela sem piedade. Sobra uma esperança inútil. Uma fístula que não fecha. Uma mágoa…
…ainda sobras tu.
Diz-me que sou louca por te amar!

Foto e conto por Rita

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A Vizinha



- Ó Maria Alcina, estás melhor dos rins?
- Na mesma.
- Anda a gente a gastar um dinheirão em comprimidos e não fazem nada. Olha a minha vizinha, coitada, que continua com a boca uma lástima.
- Benza-a Deus.
- Até assusta… Luís Miguel, anda para ao pé da avó, se faz favor.
[…]
- Tenho agora lá em casa um ferro de engomar que é uma maravilha. Ofereceu-mo o meu mais velho.
- Ai sim?
- Diz que é de caldeira. Aquilo engoma que parece manteiga. Philips!
- Ah, é bom…
- Bem melhor que o da minha vizinha, que veio armar-se com o dela. Mas não é de caldeira!
- Pois…
- É… Luis Miguel, ainda vais cair à água, raios partam o miúdo. Não te volto a chamar!
[…]
- Ó Maria Alcina, então e o Senhor Charmoso?
- Oh, não sei nada dele.
- Mas sei eu! Tenho-o visto a cirandar lá na minha rua. Anda muito amigo da minha vizinha.
- A sério? Conhecem-se?
- Abre-me esses olhos, mulher! Achas que ela tem a boca de lado porquê? Àquilo, na minha terra, chama-se galdéria!
- Ah!
- Brincas… Ó Luis Miguel, já estás dentro de água, meu cabrão! Espera que já aí vou. Nem sabes de que terra és!…

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O Derradeiro Olhar do Lince


Rogério pousa o estojo no chão e aproxima-se da falésia. Ao largo baloiça suavemente um iate. “Ali está”, murmura. Abre o estojo que lhe entregaram uma hora antes. Lá dentro, em várias peças, está uma espingarda de alta precisão, topo de gama. “Com um brinquedo destes, deve ser peixe grande”, pensa, enquanto a monta. Há muito que não lhe confiavam uma missão e só aceitou com a condição de ser a última. Não voltaram a ter no grupo alguém com o seu olho de lince. Nunca falhou um tiro, nunca perdeu um alvo. A arma está pronta. Rogério coloca-a no chão, deita-se e aponta. Pela mira consegue ver o seu alvo, na proa, acompanhado de uma adolescente. Rogério não sabe quem são. Nunca fez perguntas. Não faz juízos. Cumpre ordens. O dedo que acaricia o gatilho prime-o sem aviso. Ao fundo, um homem cai fuzilado e um vestido salpica-se de sangue. Enquanto desmancha a arma, Rogério ouve a histeria da jovem, impávido. Fecha o estojo e guarda-o no carro. Arranca apressado. Hoje vai jantar com a filha e a esta hora já deve apanhar trânsito para atravessar a ponte…


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Ritual


Lá está ela, mais uma vez, na praia, completamente nua. Todos os dias o ritual repete-se. Mas quem será aquela mulher? Rui espreita por detrás das dunas, furtivo, atrevido. Ela desenha formas na areia com os dedos, lenta, provocadora. Rui deixa-se enfeitiçar e entrega-se de longe em segredo. Ela age com naturalidade como se esta praia existisse numa dimensão só sua. Dois personagens sós partilhando a mesma tela. A mulher levanta-se e espreguiça-se na direcção do mar. O sol atravessa-a e Rui vê agora a sua forma em contraluz. As curvas ousadas daquele corpo mais velho por quem sente desejo, curiosidade, ardor, pavor. A obsessão vira perfeição e medo aos olhos de um adolescente. Quem será aquela mulher? Ela vira-se para as dunas e revela a outra metade do seu corpo descoberto. Os catorze ávidos anos do Rui explodem num turbilhão de sensações que não controla. Os dedos cravados na duna, a respiração anelante, o corpo imóvel. Ela foi sua também hoje. O ritual repete-se...


quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A Bicicleta que Fazia Sonhar


- Quem é vô?
- Quem é quem Afonso?
- Ali, aquele menino na bicicleta? – e aponta para uma fotografia amarelecida pelos anos.
- Ah, aquele menino é o teu pai quando tinha a tua idade.
Fernando tinha aprendido a andar muitas quedas depois do triciclo. A paixão fora-lhe passada pela mãe Alice, também ela uma apaixonada pela duas rodas desde sempre. Fernando experimentou a sensação várias vezes ainda bem aconchegado no ventre!
- Sabes Afonso, ainda hoje o teu pai adora aquela bicicleta. Com ela viveu muitas aventuras, conheceu outros lugares e olha, foi por causa dela que conheceu a tua mãe!
- É verdade! – interrompe a mãe Beatriz.
- Consegues imaginar o pai no dia em que se casou com a mãe a chegar à igreja de bicicleta?
- A sério mãe?! Que fixe!
- Pai, pai…dás-me a tua bicicleta? - pergunta Afonso todo entusiasmado.
- Também quero viver aventuras e conhecer o mundo!
- Não Afonso, não te posso dar a minha bicicleta filho.
- Porquê pai? – pergunta Afonso quase a chorar.
Fernando pega Afonso ao colo e limpa-lha as lágrimas:
- Mais tarde vais perceber que a realização dos nossos sonhos, as aventuras que vivemos e os sítios que conhecemos, somos nós que conquistamos!
Afonso sorri para o pai sem perceber muito bem o que ele lhe tinha dito:
- Sim pai…mas posso ficar com ela?

Foto e conto por Rita