quinta-feira, 27 de junho de 2013

Desígnio


Caio no chão desamparado. A gravidade venceu. Não me lembro onde me deixaram, nem quem ali me levou. Não sei o que me corre nas veias em vez de sangue. Sinto ao de leve o frio do chão no meu corpo dormente. Não me aguento em pé. Tento em vão captar algum estímulo com a visão, cada vez mais turva. Estou dentro de um cilindro metálico. Nos extremos, dois vidros selam a minha cápsula. Através deles, o branco de paredes a distâncias que não distingo. Tudo à minha volta é ausência de informação, de sentido. Nu e resignado, enrosco-me no que sinto de mim, assumo a posição em que nasci. Aceito o meu desígnio, orgulhoso de ter lutado. Fecho os olhos para me livrar dos não-estímulos que me perseguem. Na escuridão, encontro a luz e a paz que me transportam de não sei onde para sei lá o quê. Afundo-me no iceberg da consciência. Ao longe, oiço passos, mas os estímulos já não me resgatam. Perco-me no Nada...

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Escolhas


-"Então Luís, sempre vais para fora?"
-"Ya... vou dar corda aos patins."
-"Fazes bem, isto aqui já deu o que tinha a dar... Continuas sem trabalho?"
Luís responde com um suspiro. Naquela manhã de Domingo, junto com Beto, o seu amigo de infância, vai rodando o half pipe.
-"Tu ainda tás a trabalhar na estiva?"
-"Sim, mas já não é tão bom como foi. Agora deixo lá o dobro do couro por metade do preço."
-"Olha, emigra."
-"Já pensei nisso, mas tenho cá a miúda e a família. Não é uma decisão fácil de tomar."
-"A quem o dizes..."
Beto sorri. Olha a Ponte Vasco da Gama, vigilante, por cima deles. Esse que já foi um símbolo megalómano de uma época em que a prosperidade parecia mesmo real. Hoje, também a ela lhe são imputadas culpas.
-"Então e a Ana?"
-"Não sei..."
-"Vais deixá-la cá?"
-"Está a ver se arranja lá alguma coisa. Para já se calhar fica."
-"Má onda..."
Levantam-se. Mais uma voltinha, mais um espalho!
-"Acho que estou a perder o jeito!"
-"Ahah, olha que lá fora não vais ter disto."
-"Não se pode ter tudo..."

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Angústia


“Ah, Portugal… que só estás bem a sofrer. Do futebol à economia, só estamos bem a sofrer. Quando não temos motivos para tal, arranjamo-los. Vivemos dessa adrenalina, dessa herança, desse fado de tempos idos. A nossa mentalidade alimenta-se do sofrimento instalado no nosso país. O problema, Portugal, é que com esta atitude estás a mandar todos embora, como já o fizeste no passado. Provocas esta dicotomia de sentimentos naqueles que em ti vivem, que começa por parecer rebeldia, mas aos poucos, satura. A minha geração começa a preferir assentar arraiais noutro lado, para ser capaz de te valorizar como mereces. Prefere desfrutar de ti durante um mês a aturar-te um ano inteiro. És uma nação com mau feitio, altiva, arrogante a espaços. Colhes aquilo que semeias…”
Luís decidiu emigrar. Não sente que tenha outra opção, acha mesmo que o seu lugar não é aqui. Sentado no alto do Parque, olha para a bandeira lá bem em cima, símbolo da nação que o viu nascer.

“Ao menos esta não está ao contrário…”

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Escapadinha em 5 minutos



Olho à janela. Os céus agitam-se. Ganham vida. Uma nova cor. Um encanto Primaveril em Dezembro.
Bandos de aves povoam o céu num bailado migratório único.
E com eles, a minha alma viaja, o meu corpo desmaterializa-se e atravessa todas as fronteiras do imaginário.
Cá de cima vejo a vida correr bem devagarinho, quase parada, lá em baixo. Pontos de luz marcam qualquer coisa que não sei bem distinguir. Não me importa e sigo viagem.
Os bandos não param, vêm uns atrás dos outros e quase se atropelam para garantir que cada um chega primeiro, desenhando nos céus formas geométricas e figuras estranhas.
Enquanto isso sou levada pelas asas da minha imaginação e sobrevoo os Grandes Lagos da América do Norte, rumo a sul para o árido Sahara, plano sobre o Rio Nilo onde me refresco e sigo em direcção ao Egipto e comtemplo as enigmáticas Pirâmides de Gizé.
‘Que maravilha, que grandeza tamanha’, pensei absolutamente inebriada!
O desfiladeiro que me leva à recôndita Petra abre caminho aos aromas da Índia, à imponente Muralha da China, ao Pacífico Sul, à virgem Patagónia, inspiro a vida no pulmão da terra…

‘Ring, ring’

- Espírito Santo & Associados bom dia está a falar com a Alice.


E cá em baixo, a vida continua. Bem devagarinho. Quase parada.

Foto e conto por Rita