quinta-feira, 30 de maio de 2013

Três Luas



Feliciano sobe a rua lentamente. Descreve círculos quase perfeitos, em direcção a casa. Quase… não fosse a valente carraspana que apanhou na adega do Chico. Já leva 45 minutos de caminho e só percorreu 50 metros.
 - Sacana do Chico, deu-me a pinga estragada – diz, agarrado à garrafa de tinto que trouxe da adega.
 - Vai pra casa, Feliciano – diz-lhe a Dona Odete da janela. – Já tens idade para ter juízo.
 - E você já tem idade para deixar de ser quadrilheira.
 - Mal-educado!
Encolhe os ombros. Pouco lhe interessam as palavras de uma viúva feia que passa a vida à janela. Já percorreu mais 20 metros, está à porta da Daniela, a mais recente moradora do bairro.
 - Ai Dani, Dani, senta-te aqui! – grita-lhe da rua.
Abre-se uma janela e assoma-se um rapaz novo, musculado.
 - Vê lá se queres uma solha, ó bêbedo!
 - Irra que tás arisca hoje – murmura Feliciano, estugando o passo.
Mais meia hora e chega ao destino. Pára e olha para o céu.
 - Elá… 3 luas! Enganei-me outra vez na rua, raios me partam! Mas como é que eu vim aqui parar? E de quem é esta garrafa?...

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A Hora


Luana sente-se despertar com um murmúrio. Um leve sopro aos seus ouvidos. Ao entrar no estado consciente, lembra-se que está sozinha em casa. Abre os olhos em pânico, mas não distingue nada na escuridão. As portadas da janela do quarto balançam com um ruído ligeiro, à mercê do vento. No negrume que a envolve, nada. Com o coração a palpitar liga o candeeiro. A luz forte fere-lhe os olhos mas, na cegueira momentânea, distingue uma sombra difusa. Grita, mas o grito sai mudo. Esfrega os olhos com força, tudo à sua volta continua turvo, só distingue vultos, sente tonturas. Ouve um som abafado que vem do corredor e a luz apaga-se. Luana tem medo, sente os lábios paralisados. Tacteia até à porta e espreita para o corredor. Vê a silhueta das escadas. “Estou a imaginar coisas”, pensa. De repente, sente um arrepio nas costas, uma mão que a segura. Paralisada de medo, sente o coração a acelerar perigosamente. Não o consegue controlar. Aos ouvidos, um segredo. “Está na hora”. O coração não aguenta, explode, pára de bater. Luana cai, fulminada, no chão.


quinta-feira, 16 de maio de 2013

Extracção - parte III


Anisha solta um grito surdo. O marido. Entram no carro e Frank arranca com violência. O marido de Anisha, ex-combatente, sobe para uma mota e segue-os, de arma em riste. Uma rajada de balas crava-se na bagageira do carro. A perícia de Frank vai evitando as pessoas que fogem assustadas. A mota aproxima-se. David levanta a cabeça e uma bala zune-lhe ao ouvido.
- Acelera, Frank! Ele está mesmo atrás de nós!
- Para onde vamos? – pergunta pela primeira vez Anisha.
- Temos uma avioneta a 15 kms daqui.
O ruído da mota ouve-se cada vez mais fraco. David arrisca espreitar por cima do banco e vê o marido de Anisha ao longe a gesticular. Ficou sem gasolina. Respira de alívio, já estão fora da cidade. Frank não o desiludiu.
- Quando chegarmos ao Irão o que é que fazemos? – pergunta Anisha.
- Kuwait – corrige David com um sorriso. Já se tinha esquecido que Anisha era disléxica com lugares. – Aí levo-te para o meu mundo.
- E seremos felizes, lá no Canadá? – pergunta com vivacidade.
- Estados Unidos... Sim, muito!
- Nunca mais quero voltar aqui... – diz ela em surdina, olhando pela janela. – Esta terra nunca foi minha...



quinta-feira, 9 de maio de 2013

Extracção - parte II


Hoje é dia de mercado, onde Anisha vai, sempre acompanhada do marido. As instruções haviam sido passadas na semana anterior. Ela arma algazarra no mercado e na confusão foge para a rua, onde eles a esperam de carro. Tudo pensado para que nada falhe.
Embrenham-se discretamente nas ruas de Bagdade. O espectáculo começa daí a meia hora. David olha-se ao espelho e ajeita a sua madeixa vermelha, marca peculiar de nascença. Chegam por fim ao mercado, um dos mais movimentados da cidade. Frank estaciona, pronto a arrancar. Dez minutos. David não esconde o nervosismo. Sai do carro e observa a multidão que se acotovela por entre as tendas. Anisha ia trazer uma burka cinzenta, ela adora cinzento.
São sete em ponto. Das profundezas do mercado ouve-se uma voz que David reconhece. A balbúrdia instala-se. Gritos, empurrões e insultos vindos de todos os lados. Anisha finta a confusão e corre, guiada pela madeixa de David. Pára por um momento. Olham-se em transe, reconhecendo, redescobrindo as feições um do outro. Dez anos em dez segundos.
- Vamos embora! – grita Frank – Ele vem aí!
Anisha solta um grito surdo. O marido.

(continua)


quinta-feira, 2 de maio de 2013

Extracção - parte I


David acorda pela centésima vez. São cinco horas e o Sol ainda não nasceu. A ansiedade não o deixa pregar olho. Ao fim de dez anos de espera, é hoje que a volta a ver. Levanta-se e dirige-se à janela do hotel. A primeira claridade do dia revela os contornos de Bagdade, cidade que hoje se ergue das cinzas em que a deixaram. David foi piloto da Força Aérea Americana na Guerra do Golfo e foi aí, num campo de refugiados no Kuwait, que a viu pela primeira vez. Anisha destacava-se pela sua personalidade vincada, alegre, espalhafatosa. Chegou àquele campo perdida do marido que a maltratava. Nos meses que David ali passou em missão, apaixonaram-se, mas ele foi mandado regressar de urgência e quando voltou já Anisha havia partido. Contaram-lhe que o marido a encontrou e voltaram a Bagdade. Nenhum registo, nenhuma morada, apenas um nome. Hoje, dez anos volvidos, David regressa ao teatro de guerra. Finalmente descobriu o paradeiro de Anisha por intermédio de Frank, um amigo que lá deixou. Ela procurou-o em desespero, contando-lhe que o marido a tratava cada vez pior e que temia pela sua vida. Tomou-lhe apenas um mês a preparar tudo para a tirar dali para fora. Hoje era o dia. Lá fora, a claridade aumenta, preguiçosa, desafiadora.
 - Acorda, Frank, está na hora. – diz-lhe David, tocando-lhe ao de leve.

(continua)