quinta-feira, 25 de abril de 2013

Narcisa



"Olha para estas olheiras! Horrível, dormi demasiado outra vez. Logo hoje que tens um encontro, Narcisa, depois queixa-te que não desencalhas. Onde será que o César me vai levar? Espero que seja àquele vegetariano novo, hoje apetece-me algo gourmet. Ele tem estado muito misterioso, anda a preparar alguma, mas seja como fôr, Maria Narcisa, tens que estar à altura de qualquer acontecimento. Vamos lá tratar destas olheiras, nada que um pouco de creme de caracol não resolva. Não me posso esquecer de pentear o rabo também. Ai, já é tão tarde. Os olhos já estão, falta só um toque de brilho nas orelhas e... que horror! Estou branca. Como é que isto me foi acontecer? Tenho a tensão baixa outra vez. Espero que o César não demore muito, senão desfaleço. Olha para ti, Narcisa, girafa fatal, ihih! Só falta a cauda e estou pront..."
- Narcisa, chegou o César!
- Já desço!
"Agora esperas, que só te faz bem. Não querias levar isto tudo de borla. Falta só ajeitar o pescoço e... prontíssima. Hoje, César, vais comer e chorar por mais!"

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Tanta Casa sem Gente



Vou caminhando pelas ruas, hoje com atenção redobrada. Tenho tempo e a minha cidade merece. As pessoas à minha volta fervilham de um lado para o outro, devo ser o único folgado. Normalmente são elas que dão frescura ao meu dia, que me trazem algo de novo. No entanto, hoje, a minha atenção vira-se para o que não se mexe, para o imóvel. Os edifícios da minha cidade, alguns seculares, erguem-se dando arcaboiço a cada bairro, a cada rua. Não posso deixar de reparar que alguns estão vazios e nem sempre em mau estado, o que me intriga. Por que razão estarão casas em boas condições e no coração da cidade desabitadas? Continuo a andar, dobro a esquina. O cenário vai-se repetindo de rua em rua. Chego a um prédio alto, com cartazes a dizer “aluga-se” em quase todos os andares. Cá em baixo, à entrada, dois sem-abrigo vão ajeitando as mantas e os cartões, preparando-se para a noite. Um deles ainda é jovem, o seu rosto transparece esperança no futuro. É inevitável, o paradoxo assola-me. Tanta casa sem gente e…

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Apresentações


- Chega para lá!
- Não me empurres!
- Então sai da frente.
- Não saio.
- Vou-te atropelar.
- Deixa-me conduzir também.
- Não sabes.
- Sei sim!
- O meu pai não deixa. Se partimos alguma coisa, quem apanha sou eu.
- Vá lá, só até ao fundo do pontão.
- Não, que atiras o carro à água.
- Eu vou com cuidado, prometo.
- O pontão é estreito.
- Já disse que vou com cuidado!
- Está bem, pronto. Mas devagar!
- Sim. Ai, isto é pesado.
- Pois é.
- Que fixe! Olha agora mais rápido.
- Assim não! Vais cair ao rio!
- Pronto, já parei.
Sentam-se na beira do pontão.
- Ontem vi-te a brincar com a Rita.
- Viste?
- Vi. Vocês são namorados?
- Não, somos só amigos. Porquê?
- Por nada...
- Ahhh, gostas da Rita?!
- Não gosto nada!
- Gostas sim, que eu bem te vejo a olhar para ela na escola.
- Já disse que não gosto!
- Calma, que eu não lhe digo nada. Vocês conhecem-se?
- Só de vista.
- Então podias vir logo à tarde brincar lá na rua que eu apresento-ta.
- Está bem, mas não digas a ninguém!
- Prometo. Queres casar com ela?
- Oh pá, cala-te! Anormal!

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Perspectivas


Acordo no chão. Assustado. A minha primeira reacção é levantar-me, mas não sou capaz. Não me lembro sequer de ter caído. Olho à minha volta e não vejo sangue, o que me tranquiliza. Percebo que estou numa sala, ecoante, quase vazia. Não vejo janelas, mas o espaço está iluminado. Um objecto desperta a minha curiosidade. A poucos metros de mim está um telefone, no solo. Tento alcançá-lo mas não consigo esticar o braço. Subitamente, o telefone toca. O eco ricocheteia nas paredes e atravessa-me os tímpanos, deixando-me no desconforto. Estico o braço mas não posso atender. Desespero. A salvação pode estar ali. Não sei onde estou, não me mexo, não me salvo. O telefone emudece.

Ele acorda à minha frente. O efeito já deve estar a passar. De um canto da sala observo no maior silêncio as suas tentativas frustradas para se mexer. Parece que finalmente acertei na dose. Pelo menos este não morreu. O veneno deve retirar-lhe a memória por algum tempo, mas o efeito é passageiro. Analiso as suas reacções enquanto se tenta levantar, noto um crescendo de tensão. Ele fixa-se no telefone, tenta alcançá-lo, deve crer que ali reside a informação que procura. Faço soar o telefone e observo o seu desespero. Desligo a chamada. Deixa cair a cabeça com algum estrondo. Resignação. Anoto. A experiência foi um sucesso.