quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Avesso da Minha Pele


- És tão bonita! – disse ele ao olhar para o meu corpo nu.
Naquele último e derradeiro momento de prazer tudo era doce. Maior que o mundo. Que o fim de todas as coisas.
O toque. O cheiro. O beijo. O desejo.
Ainda sem me tocar já o meu corpo se dava aos seus pensamentos como que adivinhando o caminho já desenhado tantas vezes e atalhado tantas outras, contorcendo-se em movimentos de uma sensualidade quase imaculada.
‘Devo levá-la comigo nesta loucura?’, pensou ao olhar-me nos olhos.
‘Quero-te tanto’, responderam eles.
A pressão daquele corpo forte sobre o meu peito fez-me tremer. ‘Huuumm’.
Nada era proibido, só já não era tão consentido…e entregámo-nos!
Sentia o teu corpo tremer quando me abraçavas!
Um casaco…uma camisa…as calças…a liga. De repente toda a camada de pele falsa que protegia os nossos corpos estava espalhada pelo chão e os nossos corpos, nas mãos um do outro.
Trazias contigo o cheiro exótico de uma paixão de pele! Tudo em ti era energético, forte, envolvente e sentia-me mendigar por ti e cada curva do teu corpo!
Chamavas por mim, quente e livre…assim me entreguei.
Com a aurora veio o sabor amargo do fim quando os teus lábios apenas me disseram
 ‘bom dia’.

 Foto e conto por Rita

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Domingo



É Domingo. E aos Domingos é dia de piquenique ao ar livre.
-"Despacha-te, Alberto, já tenho o farnel pronto!"
-"Já vou!"
Alberto está a vestir o fato domingueiro.
-"Ó Alzira, anda cá ver se me arranjas a camisa."
Alzira abana a cabeça, resignada, e entra no quarto.
-"Ui, estás todo janota. Isso é para quem?"
-"Ora, para quem é que havia de ser, para ti meu couratozinho!"
-"Estás-me a chamar gorda?! Estás igualzinho ao dia em que me enganaste e me levaste ao altar!"
-"Se fosse hoje...", murmura Alberto, enquanto vai buscar a gravata.
-"Parece que vais a um casamento. A mim não me enganas tu, todo arranjadinho por causa da piolhosa da Odete", resmunga Alzira a caminho da cozinha.
É verdade que a Odete já foi piolhosa, mas de há uns anos para cá está muito mais asseada, até já toma banho duas vezes por semana. Alberto sorri enquanto faz o nó da gravata. Devia era ter casado com a Odete em vez desta bruxa!
-"Alzira, onde é que está o meu chapéu?"
-"Pergunta à Odete!"

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

DMT


Silêncio. Já todos dormem menos eu, que não tenho sono. Deitado na cama de rede, tento ler, mas não consigo focar as letras. "O efeito ainda não passou. Talvez agora me consiga concentrar." Fecho os olhos com força. Milhões de pontos de luz movem-se aleatoriamente e esforço-me por lhes dar forma, figura, sentido. Não consigo. "Que desilusão..." Levanto o braço e observo as costas da mão. "Lá estão elas!" Um movimento de luz percorre-me o braço, contorna-me os dedos e volta a sair pelo outro lado. Afinal não são formigas, é apenas luz, uma irradiância que contrasta com a da manhã. Sorrio, é aura. Foco-me nos nós dos dedos. Formam-se números. "Devia apontá-los e jogar na lotaria", penso. Mas alguns têm mais que um dígito, não faz sentido. "Que estupidez!" Volto a olhar a mão. A energia ainda flui, lenta, credível. Olho com ternura uma parte de mim que desconhecia. Tudo nas últimas doze horas parece surreal. A porta abre-se de mansinho.
 -"Já te sentes melhor? Queres um sumo de limão?"
 -"Não então, este livro vende-se em todo o lado."
 -"Ok... vou buscar o sumo."


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O Hóspede



Sebastião não sabia que se chamava Sebastião. Não sabe a sua idade. Não sabe quem é a sua família nem porque não existe com ele. Sebastião vive na rua. Todos os dias percorre quilómetros de cidade pedindo comida e revolvendo o lixo. Muitas vezes passa fome, que isto agora não está fácil para ninguém. Sebastião vive na rua, mas não é um sem-abrigo. Tem uma casa, em ruínas é verdade, mas que o protege da água que cai do céu. Há quem diga que ele é livre, mas Sebastião não sabe o que é a liberdade. No entanto, conhece bem a amizade e até tem um amigo, o André, um hóspede que lhe apareceu em casa há uns dias. Deram-se logo bem, preencheram espaços vazios há muito... Sebastião gostava que André não fosse só um hóspede, estremece de cada vez que o vê sair pela porta sem porta. Ele já saiu há várias horas, mas Sebastião também não sabe o que são horas. Foi há muito tempo, o que o deixa impaciente. Está muito frio, a casa em ruínas não é lá muito bem isolada, mas pelo menos não se molha. Passos lá fora, só pode ser ele.
-"Sebastião, estás aí rapaz?"
-"Béu!"